Tratamento Fora do Domicílio

OPINIÃO - Paulo José Castilho

Data 05/11/2022
Horário 04:30

O filósofo Martin Heidegger cita uma fábula: quando o Cuidado atravessou um rio, viu ele terra em forma de barro: meditando, tomou parte dela e começou a dar-lhe forma. Enquanto medita sobre o que havia criado, aproxima-se Júpiter. O Cuidado lhe pede que dê espírito a esta figura esculpida com barro. Isto Júpiter lhe concede com prazer. Quando, no entanto, o Cuidado quis dar seu nome a sua figura, Júpiter o proibiu e exigiu que lhe fosse dado o seu nome. Enquanto Cuidado e Júpiter discutiam sobre os nomes, levantou-se também a Terra e desejou que à figura fosse dado o seu nome já que ela tinha-lhe oferecido uma parte de seu corpo. Os conflitantes tomaram Saturno para juiz. Saturno pronunciou-lhes a seguinte sentença: Tu, Júpiter, porque deste o espírito, receberás na sua morte o espírito; tu, Terra, porque lhe presenteaste o corpo, receberás o corpo. Mas porque o Cuidado por primeiro formou esta criatura, irá o Cuidado possuí-la enquanto ela viver. Como, porém, há discordância sobre o nome, irá chamar-se “homo” já que é feita de “húmus”.
Esta alegoria representa a ideia de que o “cuidado” possui ou deva possuir o homem enquanto ele viver.  Nessa linha, podemos dizer que um dos aspectos do “cuidado”, ou melhor, da garantia de cuidado, é o acesso universal e irrestrito à saúde. Esse direito já nos é garantido pela Constituição. A saúde é um direito constitucional previsto nos arts. 6º e 196 da CF, extensivo a toda a população e constitui dever do Estado. 
Chamou atenção a matéria publicada no O Imparcial de 02/07/2022 revelando que duas crianças irmãs estão em tratamento de anemia falciforme na cidade de São Paulo, necessitando de urgente ajuda para, dentre outras coisas, despesas de hospedagem e alimentação para elas e seus responsáveis.
Isso porque em nosso ordenamento existe uma garantia de “cuidado” pouco conhecida quando se trata de acesso à saúde, que é o direito de recebimento de diárias por parte dos pais (pai ou mãe) que acompanham o filho menor ou adolescente em tratamento médico fora do seu domicílio, tendo que se ausentarem do trabalho. É o benefício chamado Tratamento Fora do Domicílio - TFD.
A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício, mais do que um simples enunciado, isso é o que manda a Constituição e a Lei 8080/90, que dispõe sobre o SUS (Sistema Único de Saúde).
Por sua vez, estabelece o Estatuto da Criança e do Adolescente em seu art. 12 que “Os estabelecimentos de atendimento à saúde deverão proporcionar condições para a permanência em tempo integral de um dos pais ou responsável, nos casos de internação de criança ou adolescente".
Assim, o município ou o ente federativo estadual, em conjunto ou separadamente, têm o dever de possibilitar a efetivação do tratamento médico necessário, em hospital conveniado ou não, às expensas do SUS. 
 No âmbito da saúde pública, o menor tem direito ao tratamento de saúde da forma mais completa, inclusive com pagamento de diárias extensivas a seu acompanhante, se e quando necessitar de atendimento fora do domicílio. 
É dever do Estado prestar assistência médica às crianças, mesmo que o tratamento exija deslocamento para outro município ou Estado, garantindo não só o transporte, mas também as diárias, inclusive para o responsável, diárias essas de valor suficiente para despesas de alimentação e pernoite, independentemente dos problemas orçamentários que a Administração possa ter, sob pena de ferir o direito à vida e os princípios da isonomia e da igualdade de condições.
Nossa Constituição e o legislador fizeram a opção e garantiram o Cuidado também na presença de um dos pais ou responsável como direito fundamental da criança e do adolescente. É nosso dever exigir seu cumprimento.        

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