Tragédia esquecida

OPINIÃO - Raul Borges Guimarães

Data 15/12/2024
Horário 05:00

Choveu a noite inteira. Era uma chuva poética, macia, melancólica. Mas o pensamento, não querendo ouvi-la, percorreu outros caminhos. Eu pensava nos estragos que a grande seca havia feito no Brasil neste ano que se finda. Dizem os especialistas que o ano de 2024 não só apresentou uma maior intensidade da seca, como também uma cobertura muito maior do território nacional. Infelizmente, mudanças climáticas tornarão esses eventos extremos mais frequentes e mais intensos, com impacto no nível dos rios, na agropecuária e na qualidade do ar. A falta de chuvas e as altas temperaturas deste ano foram propícias para a formação e alastramento de incêndios, que ocorreram em proporções gigantescas, lembram-se?
Bem, a chuva continuava escorrendo linda lá fora, lavando as cicatrizes deixadas na terra, como em outros anos secos importantes: 1998, 2015, 2020. E por aí fui caminhando ainda mais longe até chegar na “Grande seca” que assolou o mundo no período de 1877-1879. Juntamente com o nordeste brasileiro, as regiões mais duramente atingidas foram a Índia, a Austrália, o sul da África, o nordeste da China e o Mediterrâneo. Naquela época, um conjunto de eventos extremos e quase simultâneos foi responsável por esse fenômeno global: um dos mais severos “El Niño” de que se tem notícia, a redução das temperaturas do Pacífico tropical, o aquecimento das águas do Atlântico Norte e uma oscilação de temperatura no Oceano Índico. 
No Brasil, a crise econômica e a situação política do Império agravaram o problema, que se tornaria uma tragédia sem precedentes. Morria-se de forme, simplesmente de fome. 500 mil mortes, o que representava 5% da população brasileira da época (proporcionalmente, a “Grande Seca” foi 17 vezes mais mortífera que a pandemia da Covid-19!). O tema é objeto de pesquisa até hoje, trazendo a reboque fenômenos como o cangaço e o messianismo. Incluo também as artes visuais, como aquela série de pinturas de Cândido Portinari que retratou a vida de uma família de retirantes em busca de melhores condições de vida. 
Quando não chove no Dia de São José, padroeiro do Ceará e das chuvas, os sertanejos já sabem que terão pela frente um ano inteiro de seca. Crescem as romarias para o santuário de “Padinho Ciço”. Padre Cícero sabia da importância e da urgência de ações voltadas ao combate dos efeitos desse fenômeno climático. Eram coisas simples, como “não derrubem o mato; não toquem fogo no roçado; deixem os animais viverem”, mas que surtiam grande efeito. Enquanto isso, chove a chuva lá fora. Chove chuva sem parar. 
 

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