Fevereiro de 1992. Eu e meu primo Marcelo estávamos no Rio de Janeiro para realizar o nosso maior sonho. Íamos sair na escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel. O enredo era: “Sonhar não custa nada! Ou quase nada”. Para dois sonhadores, o enredo não poderia ter sido mais apropriado.
Estávamos hospedados num hotel no bairro do Botafogo. Meu irmão Roy iria sair na Mangueira. Recebo um telefonema dele: Estou passando aí, vamos lá no centro velho do Rio pegar a minha fantasia. Chegamos no centro velho, meu irmão encosta o carro. Moleques da rua se aproximam como abelhas num pote de mel: Oh tio, podemos tomar conta do carro? Oh tio, a gente lava também. Roy conhecia a malandragem carioca e finge ser um policial dizendo: É batida, é batida, sou cana e com as mãos para trás simulou como se fosse pegar uma arma e a molecada vazou grande do local. Economizei né, disse Roy.
Meu primo Marcelo dá risada desse teatro. Comecei a reparar o centro velho do Rio que estava decadente. Passamos pela lendária Rua do Ouvidor, que foi o enredo do Salgueiro em 1991. Lembrei de alguns versos desse samba-enredo: Pra primeiro de março/ falta um traço/ pra Ouvidor/ E no samba/ faltava/ esse traço/ de amor... Nesse tempo da famosa Rua do Ouvidor, o Rio era mais feliz.
O prédio onde íamos pegar a fantasia ficava a uns 300 metros de onde paramos o carro. Chegando ao prédio, fomos pegar o elevador. Um senhor de cabelos brancos, muito educado, nos cumprimenta. Estava com um negro que era a cara do Amigo da Onça, personagem de cartoon e história em quadrinhos criado por Péricles e que foi publicado pela primeira vez em 23 de outubro de 1943 na revista Cruzeiro. Um figuraço. Trajava uma bermuda e uma camisa com a mesma estampa havaiana de cor verde bem chamativa. Notei que ele estava sonolento.
No momento em que abriu a porta do elevador, saíram várias pessoas reclamando e xingando. O que será que aconteceu? Pensamos. Entramos no elevador e o senhor de cabelos brancos educadamente nos pede para apertar o botão do décimo andar. Ué, era o mesmo andar que nós íamos. O prédio era enorme, bem antigo. Quando a porta do elevador se abre, notamos que tinha dezenas de salas vazias. Vimos uma placa escrita: “Soeiro o Alfaiate”.
Roy nos disse: Se preparem que vai ter matéria. Tinha um quadro com uma foto grande do Soeiro com o Pelé. Com certeza devia ser dos áureos tempos de ouro da sua profissão. O Rei do futebol foi um dos seus fregueses. Mas estava decadente como o centro velho do Rio. Pegou mais de 80 ternos para fazer. Uma mega encomenda para esse velho alfaiate. O clima estava tenso. Os ternos não estavam prontos e o desfile iria acontecer mais à noite.
O homem de cabelos brancos educadamente diz ao alfaiate: Boa tarde, meu nome é Hélio, número 44 da Ala dos Compositores da Mangueira. O amigo da onça chega perto de um jovem que estava com seu cavaquinho e diz: Oh rapá, me dá o lugar que estou pernoitado. O jovem do cavaquinho fica com a cara fechada e em silêncio. E ele insiste: Pô, tô pernoitado, me dá uma beirinha aí. O jovem do cavaquinho é encanado e pensa que o amigo da onça tá tirando uma e diz: E eu com isso que está pernoitado...
Nesse ínterim, o alfaiate chega timidamente para o senhor de cabelos brancos e fala que o terno não está pronto. Rapaz esse tal do seu Hélio ficou bravo e começou a xingar o alfaiate até a quinta geração. O jovem do cavaquinho se levanta para pegar sua fantasia, o amigo da onça se acomoda na cadeira esticando suas pernas cansadas e fala para o Hélio: Calma Hélio, o alfaiate é gente boa, ele pecou na equipe, olho grande. Não é que esse malandro já tinha reparado que o alfaiate foi fisgado pela ganância, pois tinha apenas duas costureiras para fazer 80 ternos.
O Roy fala: Esse coitado do alfaiate não vai sair vivo daqui. O jovem do cavaquinho vai saindo com sua fantasia quando o amigo da onça, com os olhos fechados, cabeça encostada na cadeira, pergunta: “Tá feliz?”. O moleque é encanado, vem igual um touro bravo parando bem perto do malandro, louco para arrumar uma treta, e diz: “Tô sim, por quê? O amigo da onça sem abrir os olhos, com sua malandragem, sai na categoria com fina ironia, dizendo: “Então, bom desfile”. Nisso o Hélio continua xingando o alfaiate, mais integrantes da Mangueira chegando e o Roy fala para o Marcelo: Não falei que ia ter matéria. Vejam vocês.
“Sonhar não custa nada
O meu sonho é tão real
Mergulhei nessa magia
Era tudo que eu queria...”.