Mais uma etapa foi conquistada no processo de separação das irmãs siamesas de Piquerobi, Allana e Mariah, que são acompanhadas no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo) de Ribeirão Preto (SP). Nesse sábado, as crianças passaram por exames e procedimentos que vão influenciar na quarta cirurgia, em que serão realizadas a separação e reconstituição craniana.
No início da manhã, às 8h, as gêmeas fizeram exames de tomografia computadorizada e ressonância magnética. As imagens obtidas auxiliaram a realização do procedimento que ocorreu em seguida, bem como serão utilizadas para o planejamento da próxima neurocirurgia, que acontecerá no dia 29 de julho.
Em seguida, foram encaminhadas ao centro cirúrgico às 10h. A equipe da cirurgia plástica, chefiada pelo médico Jayme Farina Júnior, promoveu a inserção de expansores de pele. A bolsa é feita em silicone e todo o conjunto (bolsa, catéter e válvula) fica instalado sob a pele. Periodicamente, será introduzido soro fisiológico nela, o que garantirá o progressivo aumento de volume e ampliação da pele que recobre a cabeça das meninas.
“O planejamento dos cortes de pele nas irmãs Allana e Mariah foi feito de forma que haja tecido suficiente para a cobertura das duas cabeças quando ocorrer a separação total. A expansão que começa a ser feita nos próximos dias vai permitir essa cobertura total”, explica Jayme.
A equipe do Hemocentro de Ribeirão Preto também participou do procedimento. Os profissionais fizeram a punção da crista ilíaca (osso do quadril) para a coleta das células-tronco. O material será encaminhado ao hemocentro, onde será cultivado e preparado para sua futura utilização.
O procedimento terminou por volta das 14 horas. As crianças foram encaminhadas para a recuperação e passam bem.
Foto: Arquivo - Gêmeas siamesas são acompanhadas desde 2021 pela equipe do hospital
Células-tronco são células colhidas na medula óssea que podem se diferenciar para a produção de diferentes tecidos e formar ossos, cartilagens ou gordura. A partir do procedimento realizado nesse sábado, as células-tronco serão multiplicadas e serão utilizadas para a formação óssea na reconstrução craniana das meninas.
Esta é a primeira vez no mundo que essa tecnologia será utilizada na reconstrução dos ossos de gêmeas craniópagas e é a primeira vez no Brasil em que as células-tronco colaborarão na reconstrução craniana.
Em uma simplificação, os fragmentos ósseos são azulejos e o material que vai conter as células-tronco é o rejunte. Na última cirurgia, quando a equipe da cirurgia plástica for reconstruir o crânio, as células-tronco estarão presentes em dois materiais: o primeiro, uma espécie da massa que preencherá os espaços entre os fragmentos de ossos, e o segundo, um gel que cobrirá e fará uma camada protetora.
A equipe e a família das gêmeas estão otimistas. O chefe do setor de Neurocirurgia Pediátrica, Hélio Rubens Machado, pondera que essa é a primeira vez de um uso de células-tronco muito promissor. “Acredito que essa tecnologia abre uma enorme possibilidade no Brasil. No Hospital das Clínicas, tratamos muitos pacientes com trauma encefálico. Aliás, o trauma de crânio é endêmico no país, especialmente por acidentes no trânsito e violência. Futuramente, esses casos poderão ser tratados também com as células-tronco”, expõe.
Já a mãe das meninas, Talita Francisco Cestari, está com boa expectativa, já que as outras cirurgias correram bem e as meninas se recuperam com celeridade. “A tecnologia evolui muito rápido e a Allana e a Mariah estão se beneficiando disso. Nas outras cirurgias, elas já contaram com tantas evoluções, como o neuronavegador e a realidade virtual, que ajudou os cirurgiões, e agora o uso das células-tronco para ajudar a reconstruir mais rápido o crânio delas”, considera.
A terceira cirurgia para separação das irmãs gêmeas siamesas ocorreu em março deste ano, com duração de sete horas. A segunda havia sido em novembro do ano passado, com duração de nove horas, enquanto a primeira foi realizada em agosto do mesmo ano, com duração de 9h30.
A técnica utilizada foi desenvolvida e aprimorada pelo médico norte-americano James Goodrich. “Até os anos 1990, a cirurgia era realizada em só uma oportunidade. Com isso, os cirurgiões passavam de 24 até 36 horas no centro cirúrgico e os resultados não eram efetivos, já que fazer a separação de toda a circulação que se comunica parcialmente em uma única vez trazia um sério comprometimento cerebral para as crianças e poucas sobreviviam”, explica Hélio Rubens Machado. “Assim, ele [Goodrich] desenvolveu a técnica chamada de estagiada: são quatro etapas como se fossem os pontos cardeais, completando todo o perímetro”, completa.
A equipe multidisciplinar acompanha as meninas desde 2021, quando ainda estavam na barriga da mãe.
A incidência de gêmeos unidos pela cabeça é extremamente rara, representando um caso em cada 2,5 milhões de nascimentos.
No Brasil, a primeira separação de siamesas craniópagas, as gêmeas Maria Ysadora e Maria Ysabelle, ocorreu em outubro de 2018 – após cinco procedimentos cirúrgicos – pela equipe do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto. O caso foi acompanhado pelo próprio médico James Goodrich, referência internacional em intervenções com gêmeos siameses e que faleceu por Covid-19 em 2020.