Sigo o dia a dia acompanhando apreensivo as notícias das águas que insistem em não baixar lá nas terras do Sul. Consegue imaginar quanta água escorreu desde os morros que formam a Serra Gaúcha até as principais avenidas das margens dos rios que cortam as cidades? As cidades do Rio Grande do Sul foram atingidas por chuva até dez vezes maior do que a média histórica. Não bastasse o volume excepcional de chuvas, a água que subiu depressa escoa lentamente pela Lagoa dos Patos, afetada por ventos fortes, deslocamento das ondas de cheia e condições de saturação do solo ao seu redor. Chuvas intensas, ciclone extratropical se formando na costa do Rio Grande do Sul, fortes temporais associados aos estragos em vários pontos do Estado. Sinistra combinação de lama, corpos, pedaços de pau e troncos de árvores, caminhões e automóveis, objetos pessoais, caos...
Já escrevi outro dia que a chuva simplesmente chove. Não foi o temporal nas cidades na região serrana que provocou centenas de vítimas e pessoas desaparecidas nas planícies lá debaixo. Foi a existência material das cidades e a forma de ocupação humana em áreas de inundação por décadas....
Enquanto escrevo estas poucas linhas, o povo de lá ainda conta as vítimas. E a vida continua ou pelo menos insiste em continuar sendo vivida. Lembrei-me das lendas de urihi, a famosa terra-floresta dos Yanomami. O mundo como floresta fecunda, transbordante de vida, nas suas colinas e nos seus rios, onde encontram-se agitados inúmeros seres maléficos, que ferem ou matam quem estiver pela frente, como se fosse caça.
E lembrei também do minério extraído das terras de Minas Gerais (Brumadinho, lembra-se?), da ocupação dos morros de Petrópolis e de Ubatuba, da soja que ocupou o lugar da vegetação nativa gaúcha. Desse jeito, para os Yanomani, a chuva e a escuridão, a raiva dos trovões, dos raios e do vendaval não cessam nunca! Ao nosso redor? Apenas os espíritos mais teimosos, como o da onça, que apoia o moribundo e lhe dá coragem. Mas também o espírito da lua, que nos mantém com os olhos bem abertos e atentos.
Cada céu que cai, cada floresta que cai, coloca-se em movimento um processo de renovação. É o fim como princípio. E Aiamori, o espírito da bravura guerreira, que não para mais de cantar e dançar. “São as palavras transformadas em arco e flecha pela boca“, nos ensina Davi Kopenawa. Jubiassã, o poderoso guardião da mata, sussurra em meus ouvidos: “Não chore. Os povos da floresta sabem que não se brinca com forças tão poderosas. A floresta é bela, a chuva cai e o vento sopra”.