Uma experiência de vida para jamais ser esquecida e apagada da memória. É assim que a maioria dos profissionais de saúde e egressos da Unoeste (Universidade do Oeste Paulista) que fazem parte da “Missão Amor que Cura”, da Associação e Fraternidade Lar São Francisco de Assis na Providência de Deus (gestora do Hospital Regional Doutor Domingos Leonardo Cerávolo e do Ambulatório Médico de Especialidades de Presidente Prudente), resume os 10 dias vividos recentemente no Rio Grande do Sul. Entre o fim de abril e o mês de maio, o Estado gaúcho viveu uma catástrofe natural em consequências das fortes chuvas que transbordaram vários rios, causando alagamentos em várias cidades e deixando milhares de famílias desabrigadas. Uma corrente do bem logo se formou e, além das doações que chegavam de diversas partes do país, teve quem preferiu se doar por meio do trabalho, voluntariamente, no atendimento à população gaúcha.
De Prudente, participaram da missão cinco médicos (dos quais três egressos da Unoeste), dois farmacêuticos e um enfermeiro – estes três últimos também ex-alunos da universidade. O grupo ficou em Porto Alegre, capital gaúcha, entre os dias 3 e 13 de junho, e o envio da missão foi uma resposta diante de um pedido da Arquidiocese da capital gaúcha, que demandava de profissionais da área para atender moradores que tiveram a saúde física e mental afetadas. Os voluntários da saúde de Prudente viajaram com total apoio do vice-presidente da República, Geraldo Alckmin (PSB), que foi quem possibilitou que a missão embarcasse num avião da FAB (Força Aérea Brasileira).
Na missão, estavam os médicos formados pela Unoeste, Murilo Sabbag Moretti (pediatra), Priscila Buosi (clínica médica) e Danielle Lonchiati (residente em Psiquiatria no HR), além da médica infectologista Paola Andressa Xavier Mente, que também é formada em Enfermagem pela Unoeste em 2007 e atualmente mestranda em Ciências da Saúde pela universidade. O quinto médico que participou foi Márcio Augusto Spósito Júnior, residente em psiquiatria no Hospital Regional de Prudente. Completam a lista ainda os farmacêuticos Marcelo Kitayama (coordenador de Farmácia no HR) e Juliana Bortolan Marcato, além do enfermeiro do AME, Leopoldo Gimenez Fabri.
O frei Jerônimo Morais, atual diretor de unidade do Hospital Regional e do Ambulatório Médico de Especialidades – ambos mantidos pelo governo do Estado de São Paulo –, agradeceu um a um os profissionais que doaram parte do tempo para ajudar a população gaúcha nesse voluntariado. Ele também explicou por que esses oito profissionais de Prudente foram integrados na missão que tinha ainda voluntários das cidades paulistas de São José do Rio Preto e Pirajuí. “A pedido da Arquidiocese de Porto Alegre ao nosso Frei Francisco, presidente nato da Associação e Fraternidade, nos chegou a solicitação de voluntários especializados na área da saúde. Então nós aqui de Presidente Prudente conseguimos agregar oito voluntários, entre médicos e equipe multidisciplinar, para trabalhar nessa ação. Com a graça da ajuda da FAB e da vice-presidência, conseguimos toda a logística para que eles fossem trabalhar no local”, explicou ele.
Foto: Secretaria de Saúde de Porto Alegre - Com UBSs alagadas, atendimentos médicos eram feitos em unidades improvisadas em barracas
Formado pela Famepp (Faculdade de Medicina de Presidente Prudente), da Unoeste, em 2005, o médico pediatra Murilo Moretti não hesitou em integrar a missão quando percebeu que o trabalho dele seria necessário em Porto Alegre. “Enquanto pediatra, fiz alguns atendimentos em algumas unidades de saúde improvisadas, porque várias foram totalmente devastadas. Junto com o Exército e com a Secretaria de Saúde, pudemos atender em alguns bairros a partir da retomada de alguns serviços essenciais de saúde, e também em alguns abrigos, sendo que muitos ainda têm uma população grande. Como grupo de voluntários, também adotamos uma creche de crianças para a gente fazer a limpeza e faxina, para que pudéssemos entregá-la limpa e as crianças retomassem suas atividades do dia a dia”, contou.
Murilo também comentou sobre o maior desafio ao estar lá unicamente com o propósito de ajudar. “Foi chegar e ver aquele primeiro impacto, as cidades e as casas destruídas, inúmeras pessoas desabrigadas fora de suas casas, os relatos das pessoas de que perderam tudo, a casa, o emprego, o comércio, familiares, só sobrou a roupa do corpo. O mais chocante pra mim foi isso, ver pessoas que realmente perderam tudo”, revelou.
Foto: Secretaria de Saúde de Porto Alegre - Pediatra Murilo Moretti prestou atendimentos em algumas unidades de saúde improvisadas
Priscila Buosi, formada na Unoeste em 2008, é médica no HR há 15 anos e professora da Unoeste, onde também coordena o estágio de urgência e emergência do sexto ano da Famepp. Ela já tinha experiência nesse tipo de missão, uma vez que, em 2019, esteve na Amazônia prestando atendimentos à população ribeirinha durante 14 dias, também na condição de voluntária. Para ela, ter ido até Porto Alegre foi um propósito de Deus. “Foi a missão que mais teve impacto, tanto do ponto de vista profissional quanto do ponto de vista pessoal, devido às adversidades que nós encontrávamos nos cenários. Era muita destruição, então não só fomos como profissionais da saúde, fomos como voluntários. O termo voluntário é servir. Na verdade, a gente vai para ajudar, mas volta muito mais ajudado do que a gente ajuda”, considerou.
Na maior parte do tempo em que esteve no Rio Grande do Sul, Priscila se voltou para ajudar num abrigo de idosos conhecido em Porto Alegre como “60+”. “Realizei muitos atendimentos, não consigo mensurar exatamente o número preciso, mas eram idosos com uma grande vulnerabilidade social. O que mais me marcou foi um grupo de 11 idosos que foram resgatados de uma clínica clandestina e levados pra lá. Eles estavam numa clínica que funcionava clandestinamente e uma idosa teve muita coragem e pediu ajuda quando a água começou a subir, já que os demais cuidadores que lá estavam se safaram e deixaram eles para trás. Dentro desse grupo que estava muito fragilizado, uma idosa de 63 anos chegou para a gente pesando 21 quilos. Ela estava muito desnutrida, desidratada, não conversava. Então o trauma que ela sofreu não foi só em virtude da enchente, na verdade a enchente veio para salvá-los. Enfim, onde vimos tanta tragédia, também vimos libertação, a exemplo desse grupo que estava refém dessa questão”, conta.
Mestranda na Unoeste, Paola Mente também participou da missão voluntária. Ela classificou como “indescritível” o período em que ficou trabalhando como voluntária. “Só quem estava lá, vivenciou toda essa catástrofe, consegue saber a imensidão que foi esse desastre. No momento em que surgiu o convite, nós não sabíamos muito o que iríamos fazer, até pensei que iria ajudar como médica mesmo. Mas por se tratar de uma missão humanitária, eu fui disposta a fazer qualquer coisa para poder ajudar. E foi isso o que aconteceu. Atendi como médica, era um pouco psicóloga, também ajudei na limpeza, enfim, fazíamos de tudo. Eu falo que eu trouxe muito mais que eu levei para eles, por isso foi muito importante para a minha vida pessoal, para a minha carreira. E hoje minha opinião sobre o pessoal de lá: é um povo que tem muita força e muita fé. É isso que eu vi deles e talvez é disso que precisamos no contexto geral”, opinou ela.
Foto: Secretaria de Saúde de Porto Alegre - Paola Mente durante atendimento em missão voluntária no Rio Grande do Sul
Único enfermeiro da missão, o Leopoldo Fabri participou do trabalho junto com Murilo Moretti. O foco dele foi na triagem de enfermagem nas unidades de saúde improvisadas, bem como curativos, vacinação e dispensação de medicação. “Como os outros colegas já relataram, a gente acabou excedendo um pouco da questão da profissão e ajudando também em outras áreas. Só para contextualizar, a UBS [Unidade Básica de Saúde] que ficamos não era uma UBS instalada, era uma unidade móvel em barracas do Exército e do Sesi [Serviço Social da Indústria]. Então ali nos juntamos com os profissionais da UBS e prestamos esses serviços junto à população. Tudo para acolher de forma humanizada quem estava ali precisando”.
O enfermeiro conta que nunca tinha vivido uma experiência como essa, sobretudo pelas condições de trabalho impostas pelo cenário que encontraram por lá. “Foi uma missão de tentar manter a calma em meio ao caos. A gente trabalha num lugar tão adequado, com protocolos, e de repente você chega num lugar onde não tem água, um sabonete, um sabonete para fazer higienização das mãos ou, em alguns casos, não tinha álcool em gel. Não tinha soro fisiológico, não tinha aparelho de dosagem de glicose [glicosímetro]. Sinceramente, eu nunca tinha vivido isso. Eu sou da 23ª turma de Enfermagem, que se formou em 2006 pela Unoeste, já tinha passado pela H1N1 e pela Covid-19, mas essa experiência que tive lá eu não havia vivido ainda. Dizem que a Enfermagem é arte do improviso e, por muitas vezes lá, tivemos que improvisar. Foi um sentimento forte o que senti e, mesmo a gente se doando com o mínimo, a sensação de dever cumprido se dá por ter ajudado aquela população de alguma forma”.
O farmacêutico Marcelo Kitayama contou sobre a complexidade do trabalho dele e da colega Juliana na separação e triagem dos medicamentos que chegavam por meio de doações de várias partes do Brasil. “A Associação e Fraternidade Lar São Francisco de Assis na Providência de Deus havia feito uma campanha de arrecadação de medicamentos, então nós levamos um pouco daqui e uma grande parte dos medicamentos já estava onde ficamos hospedados e que acabou virando nosso ‘quartel-general’. Ali, fizemos a separação e triagem de um bom volume, até mesmo porque os itens e a quantidade de medicamentos diferentes eram grandes, o que demandou um certo trabalho. E era um trabalho técnico, necessário conhecer sobre os medicamentos para a gente contribuir. É um trabalho de base, que a gente chama de cozinha, pois não estamos em contato direto com os pacientes”.
A farmacêutica Juliana, que se formou em 2022, teve sua primeira grande experiência humanitária na carreira profissional. “Eram muitos medicamentos, itens que a gente nem sabia para onde referenciar, nem quem poderia usar, porque eram itens que não temos aqui no hospital, ou seja, um trabalho complexo mesmo. O que trago comigo é o sentimento de gratidão, por ter tido essa oportunidade de participar. Mas ao mesmo tempo é um sentimento confuso porque a gente se sente pequeno. A gente fez o que pôde, isso é muito bom, enche nosso coração, mas também temos noção de que tem muito ainda a ser feito”.
Na bagagem, além do aprendizado, ela também voltou com o mesmo sentimento de todos: o de gratidão. “Só de saber que, de alguma forma, você marcou significativamente a vida de alguma pessoa já é muito satisfatório. Minha formação na Unoeste é recente e eu costumo dizer que meu conhecimento hoje é pouco perto do que ainda tenho a conquistar. Mas tudo o que eu já tenho é uma ‘gotinha’ de cada pessoa, cada professor que foi ali ‘gotejando’ pouquinho por pouquinho para que eu chegasse onde cheguei. Estar lá no Rio Grande do Sul, ter feito esse trabalho voluntário, foi também despejar um pouquinho dessas ‘gotinhas’ com muito amor e carinho, que foi o que tive dos professores durante toda a minha formação na Unoeste”, concluiu ela, em tom de gratidão.
Foto: Secretaria de Saúde de Porto Alegre - Farmacêutica Juliana teve sua primeira experiência humanitária na carreira profissional