Papo filosófico com o Alemão

Persio Isaac

CRÔNICA - Persio Isaac

Data 18/04/2025
Horário 05:30

O toque matinal do celular me arranca da sonolência. Na tela, o nome do Alemão, ecoando da Barra do Una, refúgio litorâneo que ele desbravava desde os anos 70, quando o paraíso era quase secreto. Eu, confesso, troco a areia nos pés e o sal na pele pelo asfalto e a sinfonia urbana. "Fala, Alemão".
"Oh, Magrão, vem pra cá!" A solidão apertou o cerco por aí? "O dia que asfaltar tudo aí, eu vou", retruco, com a minha habitual falta de tato praiano e amor à natureza kkkk. "Larga de ser ignorante, Magrão".
"Alemão, sou bicho da cidade, igual pardal. Aliás, meu sonho acalentado é um apê na Sete de Abril, no coração de São Paulo. Acordar e ver, da janela, não o mar, mas um mar de gente sentindo a pulsação do progresso."
"Deus me livre, Magrão, tô fora!"
A conversa deriva para a política, inevitavelmente. "E aí, Magrão, o que cê tá achando?"
"Eu, com meus 72 anos, virei um otimista de luto. Fazendo uma analogia – com todo o respeito ao futebol piauiense –, a gente tá jogando na quinta divisão do Piauí, sem alambrado e sem bandeirinha."
"Magrão, é bem isso mesmo."
De repente, a minha erudição surpreende o Alemão. "Lembra daquela frase do poeta Dante Alighieri no livro ‘A Divina Comédia’?” “Qual?"
"Aquela que Dante, guiado pelo poeta Virgílio, se assusta com as palavras cravadas no Portal do Inferno."
"Pqp, Magrão, agora você foi fundo demais! Frase emblemática e sinistra: 'Deixai a esperança, ó vós que entrais'."
"Não há esperança no inferno, Alemão."
"Pô, mas não precisa ser tão pessimista assim”. “O sistema, Alemão, é como o Portal do Inferno." Para ficar mais ameno o papo, nada melhor que entrar no futebol.
“Mas e o Santos, teu time, Alemão? Como que está?”
“Uma merda kkkkk”. “Será que caminha a passos largos pra segundona de novo?”
"Não seca, não, Magrão."
"Eu aqui da praia não saio mais. Minha namorada foi pra Paulista na manifestação pela anistia do 8 de janeiro.
"Ué, e por que não foi?"
"Pra quê? Disse a ela que não aguento mais ver multidões e que entrei na caverna de Platão, metaforicamente falando."
"Mas que p... é isso?"
"Magrão, estamos ilusoriamente acorrentados a falsas crenças, preconceitos, ideias enganosas e, por isso tudo, inertes em nossas poucas possibilidades. Estamos caminhando na escuridão."
"Oh, Alemão, acho que vou até aí. Me espera, oh você!"
"Não tente o suicídio."
"Magrão, estou lendo o filósofo alemão Immanuel Kant."
"Alemão, desse jeito vais virar um ermitão em pleno século 21."
"Calma, Magrão, vamos cuidar da alma. Kant afirmava que só há conhecimento do que nos aparece, e não do que é em si."
"Alemão, acho melhor você dar um pulo no mar."
"Magrão, a parada é que daqui pra frente nós temos que ter a coragem de pensar por nós mesmos, como disse Kant."
"Pô, Alemão, estou gostando desse tal de Kant. Vem pra cá logo, pô." Aqui o Deus na concepção do filósofo holandês de origem judaica Spinosa Baruch é real. Oh loco Alemão, não vai me dizer que o Barbudo está ai? Ele disse: "Deus é a própria natureza, a substância única, e o motivo da existência de todas as coisas". Gostei dessa definição de Deus. Einstein gostava também. Acreditava no Deus de Baruch. “Alemão não se esqueça que quando der um pulo no mar, dê um abraço no Couto kkkk”. “Abs Magrão”.
O sol da manhã na minha amada aldeia vai ficando mais quente aquecendo as novas ilusões. Penso no Alemão, envolvido nas suas reflexões à beira-mar, enquanto eu me preparo para enfrentar o meu mar de asfalto. Talvez, no fundo, ambos busquemos a mesma coisa: um sopro de lucidez em meio ao caos, cada um à sua maneira, um na contemplação da natureza, o outro no burburinho da cidade. E quem sabe, um dia, a filosofia de Kant encontre eco também nas ruas das cidades. 
"A missão suprema do homem é saber o que precisa para ser homem.” 
Immanuel Kant. Vejam vocês.

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