Ele arrumou os livros, encaixou onde podia nas duas bolsas velhas e já rasgadas. Puxou a bolsa a tiracolo, equilibrou a garrafa, com água que pegou na torneira mais próxima, arrumou a sandália de couro nos dedos do pé e saiu. Quase derrubou tudo.
Foi meio trôpego até a rua. Olhou para os dois lados e pensou que rumo tomar. Não tinha aonde ir. Eram ele e mais 27 livros, as sacolas rasgadas e um lençol que servia de prateleira. A sombra da árvore à frente o convidou e ele foi. Sentou-se, respirou. Queria molhar a boca, mas não podia mais. Prometeu que não iria. Juntou a água e virou quase metade.
Começou a lembrar como havia parado ali. A rua era sua casa não fazia muito tempo. Mas teve saudade de quando ainda tinha de fato uma casa, a mulher e a receita da vida normal. Iria ser um trabalhador na fábrica, a esposa juntaria trocados com faxina, logo teriam filhos e ele se sentaria na varanda da casa alugada todo dia para uma bicada e uma conversa com os vizinhos.
Tinha mais: havia a paixão pelos livros. “Escritores devem ser deuses”, pensava sempre quando via uma edição. “Como pode? Não sei nem escrever meu nome e eles enchem páginas e páginas de palavras e ideias?” E queria mesmo era ter uma biblioteca em casa, nem que fosse um estante improvisada com meia dúzia de obras. Iria ter.
“Mas como é que tudo muda de repente?” Nunca entendeu a neblina que cobriu sua alma desde o dia que recebeu a notícia que ela não o queria mais. Dali para frente foi tudo muito rápido: a casa da mãe, depois do irmão e enfim a rua. Para quem sonhava com varanda e biblioteca, agora era o meio-fio, a luta com outros desvalidos, a droga que rondava e a bebida que acalmava.
E de repente nem podia mais ficar na cidade. Uma briga e foi-se embora. Quando chegou ao destino que achou seguro, logo tratou de procurar renda e como nunca foi afeito a serviços manuais, lembrou-se do sonho e logo teve a ideia de ser um vendedor de livros. Sim, claro. “Escritores são deuses. Vão me ajudar, sim.”
As primeiras obras ele pegou no lixo. Outras ganhou de quem soube de sua história e alguns deles foi investimento mesmo feito em sebos da cidade. No começo até, ninguém entendeu, mas logo se acostumaram com o lençol velho no chão e os livros à venda. Vendia? Pouco.
Naquele dia, aliás, não vendeu nada. Mas os alunos iam voltar e eles gostam de livros. Ou pelo menos deveriam gostar. Ficou ali na sombra, conferiu o bolso e viu que dava para pagar um prato feito. Os carros passavam na rotina e ele até que era notado por um ou outro olhar. Sempre o confundiam com um mendigo. Mas ele era, né? Era amigo dos deuses. Era um vendedor de livros.