O som das panelas ao fundo já dá uma indicação do que vai começar. Não chega a ser uma sinfonia, bem longe disso, mas o que vem a seguir se aproxima muito do requinte das boas notas musicais.
Assim que os ferros e alumínios param de bater, vem o fósforo sendo aceso e alguns minutos depois um “chiiiiiiiiiiii” bem continuado, ininterrupto. Acompanhado desta onomatopeia, um dos cheiros mais confortáveis que o ser humano criou: cebola e alho queimando no azeite. O aroma toma conta e já me faz sair de onde estou para conferir.
Com as mãos uma contra a outra faço menção de me esquentar diante do fogão. Está friozinho e inclino a cabeça para ver o que há ali. Já tomo uma primeira repreensão para sair dali. Onde já viu atrapalhar esta obra?
Mas quem disse que o corpo obedece? Quero sonhar mais a vida neste cheio maravilhoso de temperos se harmonizando, cobrindo espaços, desvendando fumacinhas brancas carregadas de sabor. Por mim, já estava bom assim mesmo, sem por nem tirar. Mas melhora.
Aparecem as carnes, com suas gordurinhas sapecando rispidamente, chiando como um “ai, ai, ai, ai”. Depois vêm os legumes. Cortados sem muita medida. Caem a esmo, ocupam lugares, encostam no óleo, chiam do mesmo jeito.
Este cheiro está me matando. Já está pronto?
Não está e pior: a panela é fechada. O som fica abafado. Que medo, cadê tudo aquilo? Para onde foi? Traz de volta! “Calma, já já fica pronto. Vai dar uma volta”. Apenas alguns minutos separam a expectativa da realidade. Mas não sem antes ser torturado de novo, com a fumacinha que sai nervosa da válvula.
Vale esperar, não vou perder tempo com aperitivos. Melhor ficar com a boca sendo aguada a cada instante até que enfim lá está, carnudo, molhado e suculento. Aquele pedaço de carne que desmancha ao tocar do garfo, mas que é arrumado junto à raiz cozida para se transformar em uma iguaria. Separados, nada demais. Aliás, dois “zé-ninguém”. Juntos, sob a batuta da chef, digno de ser ordenado cavaleiro por vossa majestade.
Não sei você, mas eu não sei viver longe de uma boa comida caseira. Não tem como ganhar de uma refeição assim, feita na ponta dos dedos, cuidada nas veias do coração, atiçada no desejo e na vontade de produzir êxtase e arrepios. Quem cozinha sabe o que vai oferecer e quem come, sabe o que vai ganhar. Tudo está alinhado em casa e não há jurado de estrela alguma neste mundo que ouse de intrometer nesta competição.
Porque aqui ninguém compete por fama, dinheiro ou reconhecimento. Aqui é amor, meu filho. Aqui é paixão, é grito, é tesão. Na cozinha honesta e cheirosa, não há perdedores.
Para Maria Cláudia, com amor e muita fome