Nesse início de ano, na estação ferroviária, na longa plataforma, apenas havia um homem e uma criança. Nos trilhos de ferro, uma locomotiva em funcionamento cobria a solidão do pátio. O avô se aproximou, mais perto, do trem de ferro e perguntou: “Vai manobrar a máquina?”
O maquinista não deu resposta. De novo, insistiu o velho senhor: “Se puser a máquina em movimento, me avise. Quero que meu neto conheça o trem, indo e vindo, passando de um trilho para outro e soltando fumaça. É ! Meu neto precisa ver de perto a locomotiva se movimentando”.
Nada de resposta. Indagou o avô novamente: “A que horas o senhor vai colocar o trem a deslizar pelos trilhos?”
O ferroviário, já desabituado de alguém lhe dirigir a palavra, respondeu: “Não sei”.
O avô, com toda calma que o neto merecia, para ver a máquina emitir os sons onomatopéicos do seu tempo de criança, “café-com-pão, manteiga-não”, disse ao maquinista.
“Eu espero. Meu neto há de vê-la comendo as duas paralelas de ferro com dormentes atravessados...”.
O homem da máquina, irritado, soltou um xingo surdo, que o avô entendeu perfeitamente: “Não encha o saco”.
De repente, a estação ficou mais solitária. Abandono e desolação se abateram sobre a plataforma. Os trilhos enferrujados e os armazéns em ruína desolavam a paisagem. Era a sensação do velho senhor de estar ali. Viera com a esperança dos ricos e agitados tempos da E.F.S (Estrada de Ferro Sorocabana). Lá estava, nostálgico embora, para mostrar ao neto a beleza ímpar de uma locomotiva pesada rolar pelos trilhos impávida e nobre, orgulhosa dos benefícios que prestara, décadas e décadas, aos prudentinos de ontem.
O homem, avô hoje e criança ontem, não acreditava no que estava vendo. O sistema ferroviário inteiramente sucateado, deteriorado, endividado e nocauteado. A plataforma comprida, antes abarrotada de malas e apinhada de gente, estava deserta. Nenhuma alma viva. Nos trilhos, perto dos barracões, uma máquina, ronronando, respirava o mau humor do ferroviário. O avô retira os óculos e, desoladamente cego, retorna ao passado, que se bobina a sua frente: o agente da estação badala o sino da partida. O chefe do trem, com Presidente Prudente separada pelos trilhos da E.F.S. 60 o apito na boca, dá o assobio da partida. O maquinista, ao imitar o apito, aciona o ipiii...uiii...uiii... e a partida acelera o adeus. As rodas se movimentam e um colosso de r-r-rr-r movimentam a engrenagem e o trem parte. Gente de dentro dos vagões acena com os olhos da saudade. Gente, na plataforma, envia beijos de despedida. O seu tempo de
criança e de moço ali estava gravado.
O neto, sentindo a ausência do avô, o puxa pelo braço, acordando-o de uma letargia “café-com-pão-café-com-pão...” “Vamos embora, vô. O trem não roda”.
O velho concorda: “não roda, as rodas estão enferrujadas...”.
E solitários, a passos desconsolados, atravessam a grade do portão de ferro e descem as escadas quebradas e carcomidas pelo tempo.
Nem tinham entrado no automóvel, a locomotiva se pôs a rugir. O avô tem, nos olhos, o desdém do maquinista. Descortina-se, em sua mente, a máquina a vapor, rangendo, ferreando e apitando. Dúvida cruel envolve-lhe a alma. Volta ou não à plataforma. Pergunta-se: “Vale a pena mostrar ao neto a ferrovia? A incompetência administrativa de corrupções políticas?”
Nada disso vem ao acaso. O neto tem de ver, sentir e ouvir, mesmo de longe, a grandeza da estrada de ferro. O gigantismo das locomotivas arrastando vagões lotados de mercadorias, para abastecer as populações e criando riquezas.
O neto decifra a intenção do avô e o desconcerta ainda mais: “São esses os trilhos que querem tirar para fabricar uma avenida de automóveis?” O velho e bairrista morador da Vila Marcondes, defensor da separação da cidade pelos trilhos da antiga Sorocabana, a custo, contém algumas gotas salgadas dos olhos marejados de lágrimas.