Nunca te vi, sempre te amei

OPINIÃO - Raul Borges Guimarães

Data 14/02/2021
Horário 04:30

10 de fevereiro de 1990. Era uma aula de Geografia do Brasil. E eu ali, na capital da Alta Sorocabana, em uma sala repleta de estudantes do 3º ano para a primeira aula na Unesp (Universidade Estadual Paulista). Sentia-me embarcando no Zepelin, pronto para desbravar novos caminhos, pensando no futuro do Brasil a partir das barrancas do Paranapanema. 
10 de fevereiro de 2021. Foi a última aula que ministrei na graduação em Geografia da Unesp. Sensação de despedida. Agora eu não olhava mais para o futuro, mas passava um filme dos 30 anos que estive em sala de aula. Diferente do tempo daquele jovem professor, que percorria o espaço entre as carteiras dos estudantes entre esboços e rabiscos no quadro de giz, expus o último tópico de cartografia temática para uma turma abstrata, representada por fotos congeladas na tela do computador. 
Diante das limitações impostas pelas aulas remotas, busquei no fundo da minha alma toda força para que a aula tivesse êxito. Lembrei-me de muitos encontros que ocorreram em sala de aula. Quando uma pergunta de uma aluna me fazia repensar as leituras programadas. Das descobertas que fizemos juntos diante de uma simples fotografia. Das deliciosas interações entre a geografia e a arte. Dos segredos revelados pelos percursos de cada um diante das janelas que a geografia nos abre para o mundo. E dessas inúmeras lembranças que ainda vibram forte no meu peito, a aula aconteceu. 
Sim, eu aprendi no meu tempo de magistério que a aula não é apenas um determinado período no qual estudantes e o professor, cercados por quatro paredes, manipulam facetas do conhecimento. Nenhum professor “dá uma aula”, como se diz na linguagem do senso comum. Pelo contrário, a aula é um processo de trabalho, precisa ser produzida. Ela somente acontece quando, ao término do encontro, professores e estudantes se sentem diferentes, mais humanos. A aula é um processo de humanização. E como tal processo é fundamental no momento em que vivemos!
Terminada a última aula, a turma fez comentários emocionantes, lembrando do significado dos nossos encontros de quarta-feira, o que me fez lembrar de um filme: “Nunca te vi, sempre te amei”. Anthony Hopkins (adoro ele), no papel de um discreto livreiro britânico, mantém uma comovente troca de cartas com uma mal-humorada escritora americana (Helen Hanff). Foi do amor incondicional dos dois pelos livros que surgiu uma profunda amizade e respeito. Como no filme, não tive a oportunidade de conhecer pessoalmente muitas alunas e alunos que participaram do meu último voo de Zepelim. Mas no decorrer das aulas, descobri as destrezas com as agulhas de tricô da Sandra, o interesse pelos mapas do Edson. As habilidades do Lucas e do Helckson. A vontade de aprender da Ana Carolina, Tamiris e do Wuelliton (nosso coronel Peres Lima, he, he). Fui apresentado à mãe que acabava de voltar do serviço e informado acerca da  ausência de muitos pela necessidade de trabalho para melhorar a renda da família naquele momento crítico. Mesmo distantes fisicamente, tornei-me mais próximo da turma. Quando tudo voltar ao normal, faremos uma rodada de bolovo no Makoto....promessa é dívida!
 

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