No hospital

OPINIÃO - Aldir Guedes Soriano

Data 17/07/2024
Horário 05:00

São Paulo, 14 de outubro de 2040

Thomaz Lúcio, Aurélia e Micaela foram levados à sala de espera do Dr. Aires Seldon. O trio estava apreensivo com as informações disponíveis no prontuário. Iago apresentava graves distúrbios neurológicos, meningite, febre e infecção generalizada. Havia um ar de aflição e melancolia. 
— Aguardem um momento, o doutor já está a caminho para lhes explicar o estado clínico do paciente, orientou a enfermeira. 
— Boa noite, eu sou Aires, chefe da equipe médica. 
— Dr. Aires Seldon? 
— Sim, em carne e osso, respondeu o médico muito afavelmente. Eu não renuncio ao contato pessoal com os meus pacientes e familiares. Iago não é doente imaginado, é real. Utilizo inovadoras tecnologias, mas, por princípio, não transfiro a minha conduta médica a nenhuma inteligência artificial. Medicina é ciência e arte. A máquina pode operar friamente e, até, precisamente, mas, por enquanto, não pode substituir a arte gerada de forma singular apenas por cérebros biológicos. 
— Diga-me, Micaela: você notou alguma mudança no comportamento de Iago nos últimos meses? 
— Sim, Dr. Seldon, respondeu a moça. 
— O comportamento do meu marido se tornou cada vez mais frio, distante, impulsivo e, por vezes, depressivo. Ele era um pai presente e amoroso, no entanto recentemente ele criou um clone para se relacionar com as crianças. Além disso, ele se envolveu amorosamente com a robô Iaiá-Amélia. Parece que Iago voltou a se comportar de forma inconsequente como antes da instalação do chip.
Pacientemente, o médico mostrou imagens do cérebro de Iago, demonstrando a calcificação das duas amigdalas e os sinais de acúmulos de proteínas, fibrina e nanoplásticos por todo o órgão e, principalmente, em torno do chip implantado. 
— Um cérebro de plástico? — exclamou Lúcio, atónito. Sim, confirmou o doutor. Encontramos nanopartículas plásticas no sangue e, também, em diferentes tecidos do paciente, incluindo o cérebro. Esses achados se tornaram frequentes desde a década de 20. Mesmo com a despoluição do ar e de rios importantes como o Pinheiros e o Tietê ainda temos que lidar com contaminantes acumulados nas pessoas. 
Simplificando ao máximo, O Dr. Aires explicou o que estava acontecendo com o paciente: 
— Com o tempo o chip cravado no cérebro de Iago provocou uma grande reação inflamatória com depósitos de fibrina e proteínas. Bactérias e nanoplásticos aderiram ao tecido inflamado. Então, esse dispositivo eletrônico, implantado com a finalidade de modular o sistema límbico e o córtex frontal, deixou de funcionar. Assim, foi reativada a antiga disfunção cerebral, impedindo que Iago possa processar adequadamente emoções e valores. Por isso, o paciente voltou a se comportar de forma estranha. Desta forma, a esposa e os filhos perderam qualquer significado. Isso também explica os recentes episódios de impulsividade, congelamento emocional, apatia e depressão. Sabemos, hoje, que a consciência depende das emoções. Sem emoções não há consciência. Sem sistema límbico, sem emoções. Sem consciência, sem valores. Sem valores, sobram apenas instintos inferiores. 
Por fim, o Dr. Aires levantou intrigante questão: 
— Não entendemos como nenhum alerta de falha no funcionamento do chip foi enviado para a equipe que instalou o chip no cérebro de Iago. Isso é um mistério a ser esclarecido.
Sensibilizada, com a condição do marido, Micaela queria respostas objetivas: 
— Ele vai sobreviver? Qual é o tratamento? Nesse exato momento, ouviu-se a voz do silêncio e no vento uma promessa. A presença acolhedora e humana do médico transformou o ambiente assim como os raios solares dissipam o frio e as trevas. Lágrimas rolaram no rosto de Aurélia e Micaela. Lúcio pigarreou para dissimular a emoção desencadeada por tamanha irradiação de compaixão, originada por um coração de carne e uma mente brilhante.
 

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