Meu destino é um rio do deserto 

António Montenegro Fiúza

«Meu destino é um rio do deserto 
A murmurar-me aos pés; 
Veia nascida em urna noite amarga, 
As bordas são de areia, a onda é larga 
E loucas as marés. 
 
Tem as águas azuis, — mas são profundas 
Naquele murmurar, 
Correm aqui como a falar segredos 
Sobre leito de lodo e de rochedos 
A um ignoto mar! (…)» 
Ofélia, Machado de Assis 

Tivesse já sido instituído, no século XIX, o Prêmio Camões teria sido concedido, indubitavelmente – e, em pelo menos uma das suas edições – a Machado de Assis; mas pelo anacronismo da ideia, foi-lhe atribuída maior honra: a de ser um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, a qual fora idealizada e fundada em 1897, juntamente com um grupo de intelectuais da Revista Brasileira. 
Joaquim Maria Machado de Assis é um dos nomes incontornáveis da literatura brasileira: escreveu cinco coletâneas de poemas, dez romances, 205 contos e 600 crônicas, dez peças teatrais e inúmeros folhetins, textos jornalísticos e crítica literária; abarcou, de uma só assentada, todos os gêneros literários… e fê-lo de forma sublime.  
Nascido num bairro pobre do Rio de Janeiro, aquele a quem ainda se considera o maior escritor negro do país, escreveu sobre a realidade do Brasil, por quase sete décadas; com as suas letras e uma pena aguçada, pintou quadros realistas, profundos e detalhados da vida, da sociedade, dos hábitos, dos usos e costumes de uma sociedade que brotava, sedenta de vida. 
Pai do Realismo Brasileiro – a corrente literária que propõe uma descrição objetiva dos fatos sociais, Machado de Assis debruçou-se sobre a condição humana, nos seus mais intrincados conflitos, na crueza dos seus atos e pensares; muitas vezes falou da violência sub-reptícia implícita e psicológica, a qual pouco se via e bem se escondia e da necessidade da mudança. Apresentou as mulheres como seres fortes, autênticas líderes, mesmo quando protagonizam papeis tradicionais da esposa, da dona de casa, da mãe ou mesmo da escrava; mulheres com força de caráter.  
Muitas vezes descreveu dores, obrigando o leitor a chorar mesmo sem entender o porquê; em outros momentos, com sagacidade peculiar, fez com que se risse, fez com que o leitor pensasse, levando-o mansamente por questionamentos filosóficos profundos mas de forma tão suave e pleonástica,  desapercebidamente, mergulhando na profundidade e voltando à superfície, incólumes. 

«(…) Deixa-me, não te curves sobre as flores 
Deste leito de azul; 
Molhastes os teus vestidos, foge embora! 
Não te despenhes, — vem o mar agora 
Encapelado ao sul. 
 
Enxuga agora ao sol as tuas roupas 
E deixa-me seguir; 
Não sei qual a torrente que me espera; 
Vai, não prendas a tua primavera, 
Onde é fundo o porvir!» 
Ofélia, Machado de Assis – excerto final  

 


 

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