Faço parte do grupo de quase cinquenta milhões de brasileiros que começou a ler as primeiras letras pela famosa cartilha “Caminho suave”. A letra B estava impressa na barriga de um bebê e a lição dizia: “A babá é a Biba. O bebê é a Bia. O bebê bóia”. A letra V formava o chifre da vaca e o texto dizia: “Viúva é a vaca do vovô. Vovô toca viola. Viúva ouve a viola: mu, mu, mu. Vovô ri da Viúva e fala: Viúva é uma vaca muito viva.” Divertido, não? É incrível como essas lições ficaram marcadas por quase sessenta anos, certamente pela sonoridade das frases, as ilustrações divertidas e os exercícios repetitivos (haja paciência da cobrança dos deveres de casa pela minha mãe!).
Com as dificuldades de leitura e as defasagens das crianças que começaram a ler em casa durante a pandemia, tem gente tirando a cartilha antiga do baú. Esquecem que naquela época o Brasil ainda era um país rural e com poucos recursos para o aprendizado infantil. Ou que a descoberta da leitura não exige apenas decodificar as palavras, mas um processo crescente de interação do leitor com o mundo. Um diálogo entre a expressão oral – mais livre e afetiva, e a linguagem formal da escrita. Compreender e sentir problemas da vida real. Também dar asas à imaginação e navegar por lugares nunca visitados.
Polêmicas à parte, não sei dizer exatamente como formei o gosto pela leitura...Progressivamente fui percorrendo coleções que havia na escola. Quando estava no quarto ano, as obras de Monteiro Lobato eram uma porta para iniciantes. Li primeiro “Caçadas de Pedrinho”, depois “Picapau amarelo”, “O Minotauro” e “Viagem ao Céu”. Tive em seguida a minha fase de Agatha Christie (“O assassinato no Expresso do Oriente”, “Morte no Nilo”, “Mistério no Caribe”) e comecei a ganhar livros. Muitos clássicos como “Odisseia”, “Dom Quixote de La Mancha”, “Moby Dick”, “A metamorfose”, “O pequeno príncipe”, “Cem anos de solidão”.
A literatura brasileira foi uma descoberta no Ensino Médio graças ao nosso grande mestre Agnaldo José Gonçalves e suas artimanhas para manter os jovens inquietos nas tramas de Mário de Andrade em “Macunaíma” – o herói sem caráter, ou a narrativa póstuma de Brás Cubas e outras genialidades de Machado de Assis pelos labirintos de “Dom Casmurro”. É a educação como produção do conhecimento e não meramente transmissão de conteúdos. Compreensão encarnada do mundo. Dúvidas e curiosidades como desafios para o professor. Não há pergunta sem o espanto, assombro diante de problemas essenciais... Sentir o fato e apreender a sua razão de ser.