Quando criança, na pequena Santo Anastácio, recebíamos, eventualmente, aos sábados, a visita de Leque, cachorrinho vira-lata da minha vó. Ele saía sozinho da casa dela, atravessava a cidade (umas dez quadras) e conosco permanecia até o domingo pela manhã, quando pedia para que abríssemos o portão. Ele ia até a feira, no centro da cidade, onde encontrava minha vó, que fazia suas compras. Com ela ia para casa para talvez nos visitar no sábado seguinte.
Inteligência inata ou comportamento instintivo? Foi Aristóteles quem instituiu essa divisão entre nós, humanos, seres racionais e dotados de inteligência, e eles, animais, destituídos desses atributos. A ciência do século 19 manteve essa dualidade e esse paradigma impedia estudos acerca da inteligência animal. À revelia da crescente relação afetiva entre homens e animais, operada pela domesticação desses por aqueles, apenas na segunda metade do século 20 que a ciência passou a estudar a fundo a inteligência animal, suas formas de linguagem e com a ajuda da filosofia, seus possíveis graus de consciência.
Em 2020, o prêmio Nobel consagrou “Professor Polvo” como o melhor documentário daquele ano. Mostrando a surpreendente perspicácia do polvo, o vídeo quebra paradigmas ao mostrar não só sua inteligência, mas também a capacidade de criar vínculos afetivos e demonstrar graus sofisticados de consciência. Antes disso, pululavam estudos a respeito das capacidades de comunicação de golfinhos e baleias, com a descoberta de formas avançadas de linguagem, com até mesmo, dialetos utilizados por grupos de baleias em distintas regiões do globo.
Em 2022, o primatólogo, Frans de Waal, publicou o livro: “Somos inteligentes o bastante para saber quão inteligentes são os animais?” No texto, o cientista relata inúmeras experiências por ele realizadas com primatas, além de outras pesquisas feitas por colegas com os mais diferentes animais, entre eles corvos e elefantes, para responder que sim, não estamos sozinhos no reino da inteligência, da linguagem e quem sabe, da consciência existencial.
Recentemente conheci os vídeos da cadela Bunny, que, auxiliada por sua tutora, aprendeu a utilizar um teclado com palavras e expressões. Paulatinamente, a tutora vem acrescentando palavras a esse teclado e hoje Bunny é capaz de pedir coisas, expressar sentimentos e até mesmo se colocar questões existenciais, do tipo: Why Bunny dog? Os vídeos são tão surpreendentes e impactantes que se forem verdadeiros, nunca mais olharemos os animais da mesma forma. Bunny e sua tutora vêm sendo estudadas pela Universidade de São Diego, na Califórnia, que além de Bunny, vem investigando outros 1.400 cães que vêm demonstrando habilidades semelhantes.
O antropólogo, Eduardo Viveiro de Castro, mostra, a partir de suas pesquisas etnográficas, que para os povos originários do país, a natureza divide-se entre humanos (homens e animais) e não humanos (plantas, rochas, etc). Somos, afinal, todos humanos. Sabedoria indígena que só agora ousamos reconhecer.