"O pior de tudo é que estava morrendo gente aos borbotões, e o governo dizia nas ruas e nas folhas que a gripe era benigna. Certo dia, as folhas noticiaram mais de 500 óbitos, e mesmo assim a gripe era benigna, benigna, benigna. (...) As mortes eram tantas que não se dava conta do sepultamento dos corpos". Depoimento do sobrevivente Nélson Antônio Freire para Adriana da Costa Goulart, no estudo Revisitando a espanhola: a gripe pandêmica de 1918 no Rio de Janeiro.
O incrédulo testemunho sobre a devastação que a gripe de 1918 causou no Rio de Janeiro serve para nos convencer de que, sim, algumas coisas melhoram ao longo do tempo – e outras se repetem malignamente como sol nas manhãs. Atacado hoje por uma pandemia que evoca a da peste negra, no século XIV, e a da gripe espanhola, no primeiro quartel do século XX, o planeta reuniu um acervo de equipamentos para enfrentar a calamidade gigantesca que seres infinitamente pequenos, como vírus e bactérias, infligem à humanidade.
No Brasil, a legislação evoluiu como em todos os campos do Direito, para proteger os cidadãos vítimas não só das doenças, mas também dos que infringem as leis que regulam o combate às enfermidades.
Tão logo a epidemia instalou-se no país, a Comissão de Defesa do Consumidor da OAB São Paulo preparou a Cartilha Direitos do Consumidor - Covid-19 para orientar advogados e os cidadãos em pontos, como quebra de contrato, aumento abusivo de preços e atendimento dos planos de saúde.
As leis penais também evoluíram. O Código Criminal do Império de 1890 era omisso quanto a delitos, como a propagação individual de doenças ou desrespeito às normas preventivas editadas pelo poder público. Tais diretrizes constavam mais dos códigos sanitários municipais.
Mas, em 1940, o novo Diploma promulgado pelo Estado Novo já levava em conta os traumas do país em epidemias. Ainda hoje em vigor em sua maior parte, o Código Penal estabelece a responsabilização daquele que "causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos", fixada pena de reclusão de dez a 15 anos, dobrada se do fato resultar morte, como preceitua o artigo 267.
Já o artigo 268 do CP alcança quem "infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa". Pena: detenção, de um mês a um ano, e multa. Cabe lembrar, aqui, a previsão mais severa contida no artigo 1º da Lei nº 8.072/90, em inciso incluído pela Lei nº 8.930, de 1994, a tornar hediondo o crime de epidemia, consumado ou tentado.
Embora seja sempre mais recomendada a adoção de medidas preventivas, o Direito Penal apresenta enquadramento específico para hipóteses relacionadas a todos aqueles que, de forma deliberada, contribuem para a expansão ao desdenhar da epidemia, mediante manifestações em mídias sociais e comportamentos contrários à orientação das autoridades sanitaristas, lembrando que, como a lei é medida de todas as coisas, aplicada indistintamente, qualquer um que a inobserve estará sujeito à tipificação penal.