Entre a luz e a escuridão

Persio Isaac

CRÔNICA - Persio Isaac

Data 23/04/2023
Horário 05:30

O tilintar das teclas da máquina de datilografia acorda a mulher nua que está dormindo no sofá da sala, depois de uma noite de sexo profissional. O cigarro acesso, a fumaça saindo pelas narinas, os goles no copo de whisky sem gelo vão dando coragem e inspiração para Thomas preencher a folha branca com palavras. Procura um sentido para sua vida que ficou sem rumo. Grandes escritores escreveram grandes romances nesse objeto que hoje se tornou obsoleto frente aos modernos computadores. 
Charles Bukowski não se separava de sua máquina de escrever portátil Royal Modelo HH. T.S. Eliot era devoto de sua Smith e a Corona de Ernest Hemingway foi cúmplice de algumas de suas mais belas histórias. Thomas vai contando sua história de vida de como perdeu seu casamento e sua família desmoronou. O trabalho de investigador do Departamento de Narcóticos o absorveu nessa terrível guerra contra o tráfico de drogas. Viu como nasceu o tráfico nas favelas do Rio de Janeiro na década de 70 e perdeu a fé. O sistema é f... Não deu atenção a sua família, foi um pai e um marido ausente, e por ironia do destino, seu filho Gabriel está perdido envolvido pelo vício com a cocaína que ele tanto combateu.  
A mulher nua se chama Karina, ela serve para apagar um pouco da sua solidão. O raio de sol começa iluminar um novo dia, trazendo novas ilusões. Sua filha Paula não consegue emprego e mora com a mãe que vive em depressão. Gabriel está morando com seu amigo de infância, o Lilico, no Morro do Adeus. Precisa da cocaína para se sentir vivo e forte, a companheira ideal para viagens de alto astral. É encantado pela mulata Ana, namorada do traficante Paulinho do Adeus. A dor é necessária, ela sempre orienta e mostra o perigo e impõe limites, mas o cérebro de Gabriel não emite mais sinais de perigo. Suas narinas ressecadas e pupilas dilatadas dão a ele um sentimento de que tudo é permitido, não há limites. O baile funk libera geral e a batida ritmada do rap da felicidade vai dando o tom de ousadia de querer ser feliz no mundo dos esquecidos: 
"Mas eu só quero é ser feliz
Feliz, feliz, feliz, feliz onde eu nasci, e poder me orgulhar
E ter a consciência que o pobre tem seu lugar"... 
O racismo, as desigualdades sociais, a violência mostram a incompetência de um Estado omisso e corrupto que deixou as drogas crescerem e os traficantes agora fazem o papel do Estado. Crime organizado não cresce sem a corrupção. Gabriel está bolado e faz uma graça para Ana. Ele é um menino de apenas 17 anos, corpo atlético, bonito de olhos verdes e é chamado de playboy no morro. Thomas continua escrevendo seu drama tentando entender aonde que errou tanto como pai. Foi um investigador rigoroso, honesto, sério que cumpriu seu duro dever. Suas palavras são cheias de culpa e perguntas sem respostas. Procura o perdão a cada gole de whisky. Gabriel vai ficando mais abusado e seu amigo de infância, Lilico, lhe dá uma dura: Tá maluco rapá, tu tá doidão, Paulinho tá te manjando, larga de ser otário. Os ouvidos de Pedro fazem pouco caso e seu desejo se torna mais forte a cada cheirada no pó branco lhe dando a sensação de uma falsa felicidade. Vacilão na lei do morro tem vida curta. O funk melódico, “Fico assim sem você”, de Claudinho e Buchecha, dá um tom de inocência de um amor juvenil: 
"Por que é que tem que ser assim?
Se o meu desejo não tem fim
Eu te quero a todo instante
Nem mil auto-falantes
Vão poder falar por mim"... 
Gabriel sorri para Ana e se aproxima cheio de desejos. Paulinho do Adeus deixa a raiva gritar mais alto, apela para seu revólver 38 e dispara uma bala da morte que é abafada pelo som forte das caixas potentes de som. Gabriel cai no chão com o povão dançando. Vai fechando seus lindos olhos verdes ouvindo os versos inocentes: 
"Eu não existo longe de você
E a solidão é o meu pior castigo
Eu conto as horas pra poder te ver
Mas o relógio 'tá de mal comigo"... 
Sua vida vai chegando ao fim. Thomas continua escrevendo, sua sensação de fracasso é como um livro cheio de promessas que ele comprou e nunca leu. Vai tentando achar respostas, desculpas para seu drama familiar. Poderia ter sido tudo diferente. Sua filha recebe um telefonema do Lilico e um grito desesperado ecoa no apartamento vazio de afeto. Gabriel já não está mais nesse mundo. Thomas continua procurando respostas no tilintar nas teclas de sua máquina obsoleta. Cria coragem para escrever as palavras que ele tanto sufocou e enfim ele escreve na folha de papel: "Filho eu te amo". Se sente em paz e se ajoelha:
"Que Deus nos livre dos males de Satanás
Deus seja louvado
O compassivo, o misericordioso
Governante do dia do juízo final
Guia-nos no caminho certo
Dos que recebem a sua graça 
Não o daqueles que derramaram a ira
Nem daqueles que se desviaram 
Amém".

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