Ciúme é vírus eleitoral

OPINIÃO - Gaudêncio Torquato

Data 15/04/2020
Horário 04:18

A lembrança de Hannah Arendt cai bem nesse momento: "a inveja era o vício nacional na antiga Grécia". Pois é, o presidente da República tem usado seus espaços de expressão para azucrinar o ministro da Saúde, Luiz Mandetta. Seria o ministro um arrogante, o poder teria subido à sua cabeça e, mais, quem tem o poder da caneta é ele, que comanda o país. No pronunciamento da última quarta, Bolsonaro levantou bandeira branca. Em termos. Garantiu que “grande maioria dos brasileiros quer voltar a trabalhar. Essa sempre foi minha orientação a todos os ministros, observadas as normas do Ministério da Saúde”. Ou seja, repete a tese que defende, desta feita sob a obediência à visão do Mandetta.

O ministro permaneceu no cargo por intercessão dos generais do Planalto, insistindo na defesa do isolamento social, barreira mais eficaz para atenuar a devastação causada pelo Covid-19.

São muitos os exemplos de fritura de ministros ao longo dos ciclos políticos, mas nunca se viu uma situação tão constrangedora como esta última: um presidente da República destratando publicamente um dos seus mais importantes auxiliares. Que conta com maciço apoio da sociedade.

Qual o motivo de tanta desconsideração e deselegância? Ciúme? Inveja? Se for isso, Bolsonaro puxa esse vício para o tabuleiro da política.

Não é preciso conhecimento avançado para se aduzir que o presidente Jair aprecia conviver com situações inseridas no departamento das "coisas politicamente incorretas". Falar mal de ministros, dar pitos públicos, puxar a orelha de uns e outros, fazer piadas de mau gosto, apelar para símbolos sexuais e usar expressões misógenas e machistas, são pistas que apontam para a incivilidade do mandatário-mor da República.

Bolsonaro teria ficado com ciúmes do prestígio adquirido pelo ministro junto à opinião pública, nos moldes de postura assemelhada quando se distanciou de Sérgio Moro e Paulo Guedes. Com um drible, Mandetta referiu-se de maneira indireta ao assunto. Contou ter voltado a ler o "Mito da Caverna", que aparece na República de Platão. "Já li umas 20 vezes e até hoje não consegui entender", frisou o ministro.

O mito platônico trata de conhecimento e ignorância. Fala da caverna escura onde homens vivem acorrentados, vendo apenas sombras. Platão coloca na boca de Sócrates três imagens – o sol, uma linha divisória entre o inteligível e o mito da caverna, alegoria para explicar que a maior parte dos homens permanece na ignorância, sendo o filósofo aquele que sai da caverna e vê as coisas como são. Seria uma ironia ao 'mito' como Bolsonaro é chamado?

O presidente da República tem de sair da caverna, onde sofre com o sucesso de outros, para ver não apenas sombras, mas a verdade do mundo real.

 

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