Cícero “Boca Livre”

Persio Isaac

CRÔNICA - Persio Isaac

Data 21/03/2025
Horário 07:09

Cícero "Boca Livre", uma figura icônica do Rio de Janeiro. Ele desconhecia a palavra trabalho. Se apresentassem a ele uma carteira de trabalho era capaz dele enfartar. Um carioca da gema. Em todas as grandes festas do Rio de Janeiro, lá estava Cícero sem pagar nada. Dai vem a alcunha de "Boca Livre". 
O conheci na quadra do Salgueiro apresentado pelo meu irmão Roy. Disse ao conhecê-lo: Muito prazer Cícero, meu irmão sempre fala de você. Tu és uma lenda lá na minha amada aldeia. Ele me olha educadamente e fala: Seu irmão é um cavalheiro. Bom malandro. Entrava nos bares, pedia uma garrafa de água, tomava e saía sem pagar com o garçom atrás dele: Oh Cícero você não pagou a água. Ele malandramente dizia: Água não se paga, vem da natureza. O garçom sorria. Imagine hoje com essa intolerância. Cícero seria fatalmente uma vítima da violência urbana. 
Roy o encontra na noite carioca e ele dá um convite de uma grande e famosa festa no Rio de Janeiro. Oh Cícero você não vai por quê? Roy, enjoei dos picadinhos (strogonoff) do Chico Recarey (famoso empresário da noite carioca). Suas festas magníficas eram as mais disputadas das noites cariocas. Cícero "Boca Livre" nem dava mais importância. Ria do próprio sistema sentindo a pulsação da sua própria irreverência. 
Por incrível que pareça, o Roy encontrou o Cícero "Boca Livre" em Foz de Iguaçu. Surpreso pensou: O que o Cícero está fazendo aqui? Não tinha nenhuma festa grandiosa na cidade. Na conversa, o Cícero pergunta pro Roy como eram os nomes dos bairros. Roy estranhou dizendo: Pra que você quer saber? Sabe Roy, a gente não sabe o dia de amanhã, se alguém perguntar sobre a cidade eu já sei os nomes dos bairros. Malandro é malandro mesmo. Estava sempre preparado para qualquer eventualidade. 
Passaram os anos e a figura do Cícero "Boca Livre" sempre era lembrada por mim e pelo meu irmão Roy. A gente ria lembrando do modo de vida dele, do jeito dele ver o mundo. Que cara desprendido. Estava totalmente fora do sistema. Vão chamá-lo de vagabundo e o escambau. Mas no teatro da vida tem papéis diversificados e diferentes. Talvez para Cícero "Boca Livre" o sistema era um jeito de viver sem sentido. Muitas máscaras sociais, papéis variados para satisfazer uma sociedade neurótica e hipócrita.
Cícero vivia ao seu modo. Parecia que ele zombava do sistema. Roy depois de muitos anos voltou ao Rio de Janeiro e pedi a ele para procurar o Cícero "Boca Livre". Alguns dias depois Roy me fala que Cícero tinha falecido. Ficamos tristes. Saiu desse mundo sem aplausos vivendo a vida do jeito dele, sem roteiro, sem um propósito, livre, sem perguntas ou respostas. O grande propósito de Cícero "Boca Livre" era viver o presente sem pressão e sem dogmas ou verdades absolutas. Não é fácil ser um bom malandro. 
E assim Cicero “Boca Livre” foi vivendo sua vida boêmia cantando um samba de João Nogueira e Paulo Cesar Pinheiro pelas ruas da cidade, de bar em bar.

"Anoiteceu
Outra vez vou sair
Andar por andar sem nada a esperar
Sem ter pra onde ir
Vou caminhar por aí a cantar
Tentando acalmar as tristezas por onde eu passar
A minha vida boêmia de bar em bar
É o meu amor sem paz
Por um amor vulgar
Que me abandonou
Chorando os meus ais
Me deixando também por maldade
Saudades demais
E eu vou levando minha alma aflita
À noite a cidade é tão bonita
Do Lamas ao Capela, e da Mem de Sá
Passo no Bar Luís
E no Amarelinho é que eu vou terminar"...
 

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