Tenho algumas cicatrizes que marcam no meu corpo as minhas histórias de criança. Uma delas fica próximo ao joelho e foi uma marca que deixei quando usava uma faca para cortar um bambu. Eu queria fazer uma pipa e não tinha a menor destreza... que perigo!
Vejo que as cidades também possuem suas cicatrizes. Através delas podemos contar muitas histórias. Em Berlim, por exemplo, após os desastres da guerra, tudo foi reconstruído pedra sobre pedra; mas a igreja memorial do kaiser Guilherme foi deixada intacta, com as marcas do bombardeio, preservando-se na memória coletiva o que foi aquela tragédia. Em frente à Plaza de Mayo, Buenos Aires conserva traços de estilhaços da Revolução de 1955, incrustados nas paredes do Ministério do Interior. Bem, e o exemplo mais emblemático dessas cicatrizes é a cúpula oca de Gunbaku, testemunho da bomba atômica em Hiroshima, que hoje é um monumento à paz.
Não é necessário recorrer a esses exemplos catastróficos para compreender o significado dessas cicatrizes urbanas. Basta caminhar pelas ruas de nossa cidade para se abrir à sensibilidade. Descobriremos que estamos rodeados de um universo de marcas e sinais – todos surpreendentes – que têm dois traços em comum: estão situados no espaço e (o que é mais sugestivo) estão vivos.
Esses vestígios de feridas, muitas vezes já cicatrizadas, falam de pequenos e grandes conflitos, de dramas e obstáculos, de busca de soluções e de fracassos urbanísticos. Nessa trama se tecem os amores e ódios recíprocos entre a cidade e seus moradores, como diria Yi Fu Tuan ao se referir ao que ele chamou de topofilia e topofobia. Cada rua, cada esquina, cada calçada faz parte da coleção de obstáculos que cercam as pessoas, o que se torna mais grave se considerarmos que a maioria sofre de algum tipo de deficiência, desde impedimentos simples, como uma torção temporária no pé. As pedras soltas, os buracos, os obstáculos que algum negligente deixou em nosso caminho são um registro da nossa história urbana.
O registro dessas barreiras é uma forma de olhar para o futuro próximo. Afinal, daqui poucas semanas teremos o início de uma nova gestão municipal. Cada marca na paisagem nos fala de habitantes pouco amigáveis e, ao mesmo tempo, nos antecipa o que provavelmente farão os que virão depois. Por isso, é bom deixar sinais. Aqui em nossa cidade a maior cicatriz é a linha divisória deixada pelos trilhos da Sorocabana. Muitos falam na remoção dos trilhos, o que seria uma tragédia apagarmos da nossa memória o que representou a estação ferroviária na criação da própria cidade.
Talvez um dia possamos discutir propostas urbanísticas de integração da linha férrea à mobilidade entre bairros distantes, o que seria uma maneira responsável de prevenir o futuro. Outras cicatrizes s são aquelas deixadas pelas inúmeras árvores que têm sido retiradas das calçadas em muitas bairros residenciais. O buraco onde havia uma bela árvore continua ali, transformando-se em obstáculo para os transeuntes e deixando mais uma cicatriz que revela a nossa relação afetiva com a cidade.