«Amanhã a cidade virá novamente
inimiga dos poetas.
Mas agora ela dorme,
ela não sabe que os poetas falam com Nossenhor,
com a lua e as estrelas,
nesta hora tão lírica...
Menina romântica, irmã
das crianças e dos poetas...
A tua janela, florida de esperanças,
é um mistério que a cidade não entende.
Passa a serenata.
Mas no coração dos que temem a primeira luz do dia que vai chegar
ficam os gemidos do violão e do cavaquinho,
vozes crioulas neste noturno brasileiro
de Cabo Verde.»
Serenata, Baltasar Lopes da Silva (excerto)
A remota aldeia do Caleijão, em São Nicolau – Cabo Verde, via nascer Baltasar Lopes da Silva, em 1907. Uma povoação pequena, numa ilha pouco relevante de um arquipélago minúsculo, tanto que quase não se nota no mapa mundial; um ano comum, sem grandes acontecimentos: estabelecendo-se, dir-se-ia, uma redundância do banal e do ordinário.
Nesta conjuntura tão pouco especial e característica, não se poderia adivinhar que nasceria um dos grandes impulsionadores da literatura cabo-verdiana, um dos fundadores da Revista “Claridade”, o escritor do livro mais lido e representativo do país, de contos maravilhosamente redigidos, trazendo consigo a essência e a vivência da “crioulidade”, quem viria a ser, ainda, patrono da Universidade Lusófona de Cabo Verde.
Licenciado em Direito e em Filologia Românica, professor secundário numa época em que a educação ainda consistia num apanágio de muito poucos privilegiados, Baltasar Lopes da Silva desenvolveu um trabalho meritório na educação do povo das ilhas; escreveu em português e em crioulo cabo-verdiano, numa quase aliteração do falar quotidiano, no qual se misturavam (e ainda se misturam) ambas as línguas.
Escreveu sobre pessoas, simples e triviais, nas suas profissões, com os seus medos, sonhos e desejos, suas aventuras e desventuras. Denunciou os problemas sociais vigentes na época, como sejam a seca – tão recorrente no país, a fome – dela decorrente e a emigração – a qual separava famílias inteiras, mas que consistia na única esperança de sobrevivência.
Apresentou o cabo-verdiano na sua simplicidade, pintando o quadro real, de cores ocres e acres, da cor da terra na qual se semeia, mas que, sem chuva, seria regada com o sangue do povo. Apresentou as mães e avós, de uma sociedade marcadamente matriarcal, pois os homens adultos alistavam-se no exercito da emigração, fugindo da seca e da fome e enviando víveres, dos quatro cantos da terra, para sustento das famílias. Falou da ânsia de ficar e da necessidade extrema de partir... poetizou as dores e as tristezas, salpicando-as com laivos de fé e de resiliência.