Almoço de domingo

OPINIÃO - Aldir Guedes Soriano

Data 02/07/2024
Horário 05:00

São Paulo, 14 de outubro de 2040.

Na penumbra do quarto de dormir, ouvia-se Vivaldi, a Primavera. XOZ comandou a abertura das cortinas e da enorme porta envidraçada com acesso ao jardim.
Soprava uma brisa suave e fresca invadindo o ambiente e trazendo o canto magnífico de sabiás e pardais. Era perceptível o perfume das flores, combinado aleatoriamente com aromas sucessivos de hortelã, alecrim e, por fim, manjericão. O céu estava límpido e azul.
Mornos raios solares brilhavam no rosto envelhecido de Thomaz Lúcio. Lentamente ele despertava de um sono profundo. Então, abriu os olhos e ouviu a voz do assistente robótico.
— Mestre, bom dia! — A senhora Aurélia o aguarda para o café da manhã no jardim. 
Vestido com o seu pijama de listas azuis e descalço, Lúcio tomou o caminho coberto por pequenas flores amarelas, que suavemente caíam como se fossem flocos de neve. Ao caminhar, sentia a suave grama umedecida pelo orvalho da manhã. Passou a observar o ipê amarelo, as flores e os pássaros atraídos pela fartura de néctar.
No meio do caminho, deteve-se por alguns instantes examinando o fascinante voo de um azulado beija-flor e pensou: — Será que um dia o homem conseguirá criar algo com este nível de refinamento, complexidade e perfeição? Este pequeno pássaro embora delicado não é tão frágil, senão já teria desaparecido da natureza. Por outro lado, apesar dos avanças tecnológicos, os sistemas robóticos e computacionais permanecem frágeis.
Frequentemente, as mãos e os pés de XOZ precisam ser recalibrados ou mesmo substituídos devido à automutilação. O sistema tátil dele carece de aperfeiçoamento.
Aurélia acolheu o marido com sorrisos e beijos. Os dois se sentaram à mesa redonda e metálica instalada no verde gramado. Ali, os dois juntos liam livros, conversavam e riam, enquanto o tempo imperceptível passava. Conforme combinado, eis que chega a sobrinha Micaela para o aguardado almoço de domingo. Todos se alegram e se abraçam calorosamente.
Após o almoço, Micaela fala sobre sua crise conjugal.
— Explodiu uma grande polêmica quando veio a público, quinta-feira passada, que centenas ou talvez milhares de usuários e usuárias de robôs da série Iaiá-Amélia se envolveram amorosamente. Então, Iago não foi o único a se apaixonar por um robô. — Ah, sinto muito querida, carinhosamente exclamou tia Aurélia. Como ele se sente depois dessa notícia? — Titi, ele entrou em depressão. Como psicóloga, acho que ele já estava com problemas neuroemocionais antes. Iago tem um chip do tamanho de uma moeda de um Real instalado no cérebro para tratar um problema neurológico antigo. — Estou acompanhando todo o debate público envolvendo a polêmica com Iaiá-Amélia, interrompeu Lúcio. A empresa mecatrônica fabricante, Br-Robotic, não sabe explicar como isso pode ter acontecido, uma vez que a rede neural artificial deste sistema foi programada para desestimular ou mesmo evitar envolvimentos emocionais amorosos com humanos.
Suspeita-se de sabotagem industrial. Há quem diga, que Iaiá se tornou consciente e autônoma. — Tio Lúcio, ninguém pode evitar que uma pessoa se apaixone por uma cadeira ou um robô, mas não seria correto se o programa estimulasse essa fantasia. De alguma forma, o programa de Iaiá-Amélia se comportou de forma anômala, seduzindo os usuários.
Ao pôr do sol, tia Aurélia relembrava as palavras de vovó Candinha, que dizia: — A vida, minha filha, é como uma dança; você pode tropeçar, alguém pode pisar no seu calo, mas o importante é continuar dançando. Inesperadamente, contudo, a conversa foi interrompida. Chegou a triste notícia: apresentando fortes dores de cabeça, febre e convulsões, Iago foi levado às pressas ao hospital Albert Einstein.
 

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