O voto, a maior arma de defesa da democracia, está deixando o coração para subir à cabeça. A hipótese pode até parecer estrambótica nesses tempos de intensa polarização, quando o frenesi das emoções parece ganhar de capote para o jogo da razão. Enganam-se, porém, aqueles que imaginam emoção como sinônimo de explosão, catarse, palavras de baixo calão, slogans, refrãos, culto aos mitos. Quando alguém, ante uma tragédia como a que estamos vivenciando com a pandemia da Covid-19, diz - “nunca vi tanto desgoverno, não aguento mais, estou arrependido do meu voto na última eleição” - está falando pelo coração ou pela cabeça?
À primeira vista, as expressões parecem sair das veias do coração. Ocorre que elas são o resultado de um somatório de conhecimento, acompanhamento da política, comparação com outros ciclos históricos, observação acurada do que se passa ao redor. Nesse caso, temos de convir que um processo racional se desenvolveu. A razão prevaleceu, admitindo-se, claro, que coabita com a emoção na vida dos interlocutores. O fato é que, nas últimas décadas, decepcionadas com representantes e governantes, as pessoas dão as costas à política e iniciam uma jornada de revisão em sua maneira de escolher os quadros públicos.
Não se formam mais políticos como antigamente. Lembre-se, no entanto, que mudaram as condições da política. Os parlamentos já não têm mais a força de antigamente, as oposições perderam parte de seu tradicional vigor, o discurso se torna grupal/partidário/fisiológico, enquanto as tribunas não conseguem traduzir a liturgia e o calor dos grandes embates.
O carisma, brilho próprio e nato que serve para emoldurar perfis, também fenece sob a frieza calculista da política de resultados. A coragem, a audácia, o zelo e a obstinação, valores inerentes às lideranças, tornam-se escassos. Quando a sociedade reclama, o sistema político corta dedos para não perder os braços.
E o que faz o líder? Defende frentes de interesse. Grupamentos corporativos. A liderança natural está agonizante. A esfera política não vê a nova identidade em desenvolvimento no Brasil. Nomes ali expostos são os mesmos de 20, 30 anos atrás.
Nesse ano de pandemia, a ser seguido pelo calendário eleitoral, o superlativo dominará a expressão política, a verdade se cobrirá com as cores de fake news, e o mundo real dividirá suas cores com o mundo virtual. Esperemos que a passarela entre esses dois universos seja pavimentada pela prevalência da razão sobre a emoção. E que não deixemos a polarização eleger radicais. Que o cabo de guerra seja substituído pelo tronco da paz.