A herança digital é uma realidade sem retrocesso. O crescimento exponencial da utilização da internet no mundo e por via consequencial o surgimento de um patrimônio digital é um fato que deve ter a atenção das pessoas e operadores do direito para que haja segurança jurídica e seja respeitada a vontade do titular. Como veremos há um vácuo legislativo no que concerne à herança digital no Brasil, porém há mecanismos jurídicos a serem utilizados.
Inicialmente é necessário entender alguns conceitos como o de patrimônio digital, sendo o conjunto de bens ou direitos utilizados, divulgados ou armazenados em plataformas ou servidores virtuais. Os bens digitais podem ter valor econômico, como criptomoedas, domínios de sites, milhas aéreas, perfis pessoais e profissionais nas redes sociais que atraem publicidade, canais do YouTube monetizados.
Também existem bens digitais sem valor econômico, porém com elevado valor afetivo e sentimental, como mensagens trocadas no WhatsApp, contas em aplicativos, publicações em redes sociais, e-mails, fotos e vídeos.
Você gostaria que uma pessoa tivesse acesso aos seus e-mails após o falecimento? Gostaria que suas milhas aéreas fossem transferidas a alguém? Seria de sua vontade o acesso às suas fotos armazenadas em nuvem por uma pessoa querida? Essas são perguntas que estão afetas à herança digital, sendo uma preocupação crescente das pessoas e diante da ausência normativa específica sobre o tema.
Algumas plataformas possuem termos de uso para o caso de falecimento, como é o caso do Facebook e Instagram, usuário pode solicitar que o perfil seja excluído ou que um herdeiro cuide da conta após sua morte. Neste caso, o perfil é transformado em um memorial. O google, o twitter e o linkedin também possuem termos próprios. Porém muitas pessoas não preenchem os termos de uso e os mesmos podem não refletir totalmente sua vontade.
O que é possível se fazer para proteger o patrimônio digital? Na ausência de um documento em que o titular manifesta sua vontade acerca dos bens digitais sentimentais ou econômicos, poderá haver um campo fértil para um imbróglio judicial. A proteção do patrimônio e herança digital pode ser efetuado por meio do testamento público.
Merece destaque o patrimônio digital criptoativo, como bitcoins. Os investimentos neste segmento estão aumentando e muitas vezes podem ser esquecidos por desconhecimento dos herdeiros, desta forma o testamento pode ser muito útil neste sentido.
Por meio do testamento é possível o titular fazer previsões com expressão econômica, assim como extrapatrimoniais. Desta forma a elaboração do testamento é uma saída segura diante do cenário normativo lacunoso sobre o tema. Cumpre informar que existem alguns projetos de lei em andamento (PL nº 1.689/2021, 3.050/2020, 5.820/2019, nº 6.468/2019) mas nenhum foi concluído.
No âmbito da jurisprudência nacional é possível se visualizar alguns julgados sobre o assunto da herança digital, porém é um tema polêmico e que divide os doutrinadores no Brasil, de um lado o direito da personalidade e privacidade e de outro à autodeterminação da vontade pelo titular e aspecto patrimonial das relações jurídicas digitais.
Na experiência estrangeira pode se mencionar o leading case do Tribunal alemão, em que condenou o Facebook a permitir o acesso à conta da filha falecida por seus pais. No Brasil houve a recente decisão do STJ quanto à possibilidade da transmissibilidade das milhas áreas, fazendo uma distinção quanto às milhas gratuitas dos programas de fidelidade e as adquiridas onerosamente pelo falecido. O tema é instigante e merece atenção pelos profissionais do direito para melhor assessorar seus clientes e trazer segurança jurídica para sociedade.