A deusa Têmis morre de rir

OPINIÃO - Gaudêncio Torquato

Data 14/10/2020
Horário 04:32

A mentira tem perna curta. O desembargador Kassio Nunes Marques certamente não imaginava que seu curriculum vitae e seus escritos fossem vasculhados pela imprensa. E sua verdade questionada. Teria ouvido palestras que apareceram como curso de pós-doutorado. Mesmo com perna curta, a mentira corre como gazela. De repente, Kassio viu seu conceito escapar pela janela da dissonância.
A não ser que o juiz piauiense indicado para entrar no STF (Supremo Tribunal Federal) na vaga de Celso de Melo tenha se inspirado em Brecht, que escreveu um ensaio sobre “cinco maneiras de dizer a verdade”. O momento e as circunstâncias poderiam, por exemplo, ter sido usados para reforçar sua bagagem acadêmica, ferramenta para alargar o tamanho do seu perfil.
Ocorre que o STF é a nossa mais alta corte. E deve ser composto por quadros de boa envergadura. É inimaginável pensar que teria dito que, para ser membro do Supremo, não é necessário ser advogado, mas pessoa de caráter ilibado. 
Ora, o mundo mudou e ninguém pode ignorar o fato de que a área onde uma pessoa adquire “notável saber jurídico” é a do Direito. Pode, até, existir uma exceção a esta óbvia constatação, o que causaria furor ao tribuno da Advocacia, Rui Barbosa. A sapiência é, por excelência, o valor matricial do juiz. Seu vértice. Sua bússola. Sapiência é bem mais que domínio de conhecimento. É o uso do saber no caso certo e no momento adequado. É a aplicação da norma, após exaustivo exercício de hermenêutica jurídica. 
A justa sentença é a luz que guia a decisão do juiz. Infelizmente, muitas vezes, na hora de assinar a decisão, a luz é tênue ou está apagada, o que sinaliza algum acidente/incidente que mexeu com a intenção originária do juiz. Por isso, Têmis, a deusa da Justiça, nem sempre faz bom uso da balança e da espada, instrumentos que adornam sua vestimenta.
Na órbita desta abordagem, parece fora de tom dizer que, mais adiante, será inserido na mais alta Corte do país um ministro “terrivelmente evangélico”. Qual a razão de opção por identidade religiosa? Pelo entendimento de que não há ministro religioso no Supremo? Ou, pior, porque os ministros que lá estão são todos “católicos”? Sua Excelência, o presidente, demonstra vontade de jogar no lixo o preceito do Cristo: “daí a César o que é de Cesar e a Deus o que é de Deus”.
Se a ordem política começa a ser movida pelo tabuleiro das religiões, a barafunda se instalará. As seitas afro-brasileiras poderão reivindicar um nome que as represente, sob a indignação e protestos do bispo Edir Macedo e do pastor Silas Malafaia. Que elegem bancadas no Congresso. Não haverá surpresa se o dízimo passar a ser contribuição legal para confirmação religiosa. 
Pois é, o desembargador Kassio não calculou o tamanho da confusão em que está se metendo. Dados sobre sua trajetória a serem questionados, sabatina no Senado com verdades inconvenientes, decisões no amanhã que poderão arranhar sua imagem, polêmica com base bolsonarista e a maldição evangélica. A deusa Têmis, com uma venda sobre os olhos, deve estar morrendo de rir.
 

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