Ao adentrar a residência, que por fora parecia comum, como qualquer outro sobrado de classe média dessa região da cidade, o visitante é tomado pela surpresa, ao ver tantos livros reunidos naquilo que deveria ser uma aconchegante sala conjugada à cozinha. Além de todas as paredes serem preenchidas por estantes repletas de exemplares, os livros estavam empilhados por todos os lados, de todos os assuntos possíveis e imagináveis, metodicamente classificados e organizados, na medida do possível.
Havia resquícios de uma casa convencional, sofás, mesa de centro, tapetes, TV e quadros na parede da direita, ainda sem estantes de livros. Mas mesmo nela, as pilhas de alinhavam até o teto. Também havia livros em pilhas ao lado dos sofás, das poltronas e sempre alguns deles nos assentos. Na cozinha também havia livros, em cima da geladeira, da mesa e dos armários. Um ou outro na pia. Na escada, pequenas pilhas de quatro ou cinco livros, uma em cada degrau, até o segundo andar. Na área dos quartos, corredores lotados de estantes, e nos quartos, havia pilhas de livros ao lado das camas, nos guarda roupas, em todos os lugares.
Todos os dias, algumas dezenas de pessoas faziam fila na frente da casa e pacientemente esperavam sua vez de falar com o professor. Vinham atrás de informações variadas, de receitas de bolo a pesquisas sobre física quântica, astronomia ou história. O professor atendia a todos, indicava livros, autores, opinava e propunha caminhos. As autoridades toleravam essa excentricidade analógica, e mesmo membros dos altos escalões recorriam à casa, muitas vezes, quando julgavam necessário. Havia algo de místico naquilo e o capital informacional era incapaz de notar sua beleza e risco.
Todos os livros do mundo foram digitalizados e as bibliotecas públicas “descontinuadas” por desuso sistemático e corriqueiro. Quando notaram era tarde demais. A corporação, munida de algorítmicos e inteligências artificiais, determina quais resultados você terá acesso para sanar sua dúvida ou curiosidade. O conhecimento digital obedece à lógica mercantilista, e todos os resultados são pagos digitalmente em assinaturas avulsas ou mensais. O conhecimento se perdeu e foi apropriado e o professor é o último dos homens que ainda têm livros.
Os acumulou a vida inteira e é possível que já tivesse boa parte do acervo bem antes de nascer, mesmo seus pais já nasceram em posse daquela inesgotável riqueza e já não se sabia ao certo quando a biblioteca teve início. Sabia-se, sim, do iniciador, aquele que, diferentemente de todas as gerações que o precederam, estudou e tornou-se historiador, excêntrico acumulador de livros que deu à família a paixão pelo saber. O acervo nasceu assim e continuou crescendo à medida em que avançava a digitalização do conhecimento.
Chegou a minha vez de ser atendido, depois da longa espera. Estranhava o cheiro dos livros e pedi para segurar, tocar e folhear alguns deles. Sentir o toque dos dedos naqueles papéis macios foi assombroso e perplexo procurava entender a natureza daquilo. O professor então perguntou: O que gostaria de saber? Sem pensar respondi: De tudo!