O entendimento de que a autoimagem das nações é muitas vezes construída com base em mitologias de há muito se tornou senso comum nas ciências sociais, prédica também válida para as noções que calçam a identidade brasileira. Aferindo máxima do historiador Marc Ferro, autor de “Falsificações da História”, os poderes estabelecidos, não importa sua natureza ou finalidade, outorgam a todos um passado uniforme, representações que enxertam opiniões, ideias e saberes.
Atentemos então para o mapa do Brasil focando o imenso espaço da Amazônia, grosso modo sinonimizado com a Região Norte, que com 3.853.676 km², perfaz 45% do território nacional. Pois bem, através da escola, dos atlas escolares e na convivência cotidiana, somos cientificados de que este espaço é e sempre foi Brasil, percepção que por força da repetição, conquistou status de verdade irrefutável.
Mas, o que a história nos revela é algo muito diferente. Sabe-se que a colonização se afirmou com base em pontos de apoio isolados, notadamente ao longo da costa e dos grandes rios, distantes uns dos outros e que se contatavam de modo ocasional. A fragilidade desta articulação espacial induziu a criação de administrações coloniais com ampla moldura geográfica, buscando imprimir alguma unidade aos fragmentos de soberania, ratificada por guarnições militares, postos de controle e missões religiosas.
Assim sendo, desde o século 17, a administração colonial foi sancionada por meio de duas vastas circunscrições político-espaciais: de um lado o Estado do Brasil e de outro, o Estado do Maranhão, mais tarde rebatizado como Grão-Pará e Maranhão. Isto porque, o espaço brasileiro foi delineado a partir de dois grandes eixos espaciais: um horizontal, estaqueado no Rio Amazonas, sinteticamente o Grão-Pará, e outro oblíquo, seguindo a linha da costa, o Estado do Brasil.
O Estado do Brasil tinha sob suas ordens porções da costa Leste brasileira, com capital sediada primeiro em Salvador e, em seguida, no Rio de Janeiro. O Maranhão se estendia desde a Capitania do Ceará ao Peru, com sede na cidade de São Luís e depois em Belém, bem na entrada dos domínios amazônicos. Assim, existiam “duas” portentosas possessões coloniais na América Portuguesa, cada qual respondendo a Lisboa por meio de um aparato burocrático próprio. Logo, a existência de um único Brasil pré-independência é um mito.
Concretamente, a região hoje conhecida como Amazônia (com nacos do atual Nordeste), constituía outrora um espaço dotado de vida própria, cuja organização econômica diferiu substancialmente do Estado do Brasil. O Norte do país ignorou os chamados grandes ciclos econômicos (açúcar, algodão, café, mineração), assentando-se no extrativismo das drogas do sertão, termo que designava amplo rol de produtos florestais.
Em termos geoespaciais, contribuía para o isolamento da Amazônia a maior fluência dos contatos entre Lisboa e São Luís/Belém, trajeto mais curto e mais rápido devido às correntes marítimas, que em paralelo embaraçavam as conexões com Salvador e Rio de Janeiro. Mesmo a controversa dissolução e incorporação do Maranhão, em 1774, no Estado do Brasil, não diluíram a identidade geográfica, cultural e política da região. As terras amazônicas mantiveram-se como rincão periférico da área-núcleo brasileira, mantendo relações diretas com Portugal até o final do período colonial.
Adicionalmente, outro fato que nada tem de fortuito é que a Amazônia terminou integrada ao Império “do Brasil”, implicando na fagocitose da Amazônia no interior de uma governança inteiramente nova. Este fato contribui para explicar crispações que induziram a contestação ao poder imperial pelos amazônidas, evidente em rebeliões como a Cabanagem (1835-1840), sufocada pelo Império ao custo do extermínio de 40% da população da província. Ninguém se iluda: a Amazônia é brasileira não por opção, mas antes, por ter sido privada desta. Fato que omitido nas narrativas, pavimenta um dos mitos a falsear a história brasileira.