Em meio à crise de valores da sociedade materialista contemporânea, a ideologia segundo a qual a identidade de uma pessoa é determinada pelo que possui em termos materiais está adquirindo uma influência crescente na cosmovisão dos indivíduos. Tal concepção existe até mesmo de forma inconsciente e manifesta-se nas diversas práticas sociais, sobretudo na "instrumentalização" e na visão "utilitarista" dos relacionamentos humanos. Destarte, verifica-se uma profunda desordem axiológica nos princípios morais básicos e, por conseguinte, no próprio conteúdo do princípio da dignidade da pessoa humana. Mas, afinal, o que explica essa crise de valores?
A causa primordial não reside tão somente na ordem econômica capitalista, embora ela contribua significativamente para a supervalorização do consumismo materialista. A raiz de tal problema, conforme diria o teólogo Agostinho de Hipona, é explicada pelo "vazio existencial do homem" ou, segundo o filósofo francês Jacques Derrida, pelo "logocentrismo". Há no homem um vazio infinito, o qual ele busca desesperadamente preencher, seja com os prazeres sensíveis, com a realização pessoal e até mesmo com os bens materiais. É justamente dessa busca frenética do indivíduo para preencher esse vazio com um significado que o sistema econômico contemporâneo se aproveita para promover a expansão do consumismo, numa tentativa de afirmar que a posse de bens materiais se iguala à felicidade e ao desenvolvimento da individualidade.
O que se verifica, contudo, é uma verdadeira abolição da natureza humana. Para os filósofos antigos, a felicidade e a construção das potencialidades do ser humano só existem na prática das virtudes. Somente o sumo bem é capaz de preencher o vazio do homem. A mentalidade materialista corrói a busca legítima das pessoas para a felicidade, pois as engana ao afirmar que o apego aos bens é sinônimo de "ser", ou seja, de sua própria existência e essência.
Portanto, o consumismo busca associar a personalidade e a satisfação de todo desejo tão somente ao ato de adquirir produtos e riquezas. Trata-se de um autoengano funesto, já que o homem vai além do aspecto material e sua identidade, bem como sua plena realização, estão muito mais relacionadas com as suas circunstâncias, com as pessoas que os cercam, com suas potencialidades autênticas e, sobretudo, com a busca da verdade e dos verdadeiros bens.
Assim, existem bens legítimos a serem procurados, tais como: justiça, simplicidade, desapego, amizade, lealdade, caridade e o próprio amor. Conforme apontava Demócrito: "Quem faz o homem feliz não é o dinheiro: é a retidão e a prudência". Destarte, a abolição do homem provocada pelo consumismo busca atenuar a procura dos indivíduos pelos bens autênticos supramencionados e acaba por considerar as pessoas meros instrumentos para fins indevidos. Sendo assim, os indivíduos passam a ser considerados como meros “consumidores”, ferramentas para a obtenção de lucro, prestígio e popularidade. Trata-se de uma visão “utilitarista” que favorece a “reificação” (coisificação) da pessoa humana.
Em suma, é necessário reiterar que a identidade não é determinada pelo possuir. É preciso frisar que a felicidade vai além do aspecto material, conforme apontava o filósofo grego Aristóteles. É imprescindível afirmar que a posse de bens materiais não fornece ao homem a satisfação plena, conforme dizia o pensador alemão Schopenhauer. Somente a virtude, a verdade e o desapego são capazes de fornecer a felicidade. O homem vai além da realidade material.