Após uma decisão conjunta com a família, o aposentado Francisco Eufrásio de Oliveira Filho, 90 anos, decidiu se aposentar definitivamente do comércio prudentino neste ano. O amor pelo negócio era tamanho que ele chegou a contribuir mais 35 anos para a Previdência Social após obter a aposentadoria. Convencê-lo a vender a loja que comandou durante cinco décadas foi uma tarefa difícil para a esposa e os filhos, mas o antigo comerciante entendeu que, depois de mais de cinco décadas dedicadas ao serviço, chegara a hora de passar o bastão e aproveitar o descanso merecido. Francisco nasceu em Jaboticabal (SP) e foi criado em Catanduva (SP), mas foi por Presidente Prudente que se apaixonou e onde construiu a sua vida, sendo a maior parte destinada ao relacionamento com os fregueses, aos quais faz questão de atribuir respeito e valor.
Embora seja adepto do catolicismo e tenha educado seus três filhos, Paulo, Sílvia e Sueli, na mesma religião, o comerciante nunca deixou que a doutrina de uma impedisse que entrasse em contato com outras. Tanto que o estabelecimento que administrou por tanto tempo na Vila Marcondes era voltado para a venda de artigos religiosos de umbanda. A ideia de tocar esse tipo de negócio surgiu com o despertar de um lado espiritual que não conhecia até o incêndio da casa de fogos da qual era proprietário. Até hoje, não sabe dizer se a origem do fogo foi criminosa ou acidental, mas essa questão é, para ele, a de menor importância. O que guarda daquele momento é, sobretudo, a contribuição da comunidade, que não só o ajudou a conter as chamas (naquela época, segundo a família, eram os próprios munícipes que lidavam com os incêndios), como também o estimulou a seguir em frente.
Mesmo com pouco dinheiro, Francisco conseguiu abrir a nova loja com o apoio de amigos, que o auxiliaram na negociação e compra de imóveis. Ele afirma não haver qualquer segredo para conseguir gerenciar um negócio bem-sucedido e imune ao tempo, porém, destaca a honestidade com que sempre encarou a profissão. “Uma coisa eu digo para você: tudo na vida é bom, mas ser honesto é ainda melhor”. Outra chave para o negócio exitoso é sua esposa Elvira, seu braço-direito na loja e a quem declara toda a sua admiração, amor e gratidão. Confira a entrevista na íntegra:
O Imparcial: Quando o senhor se tornou comerciante?
Francisco: Há mais de 50 anos. Abri uma loja em um quartinho de madeira da minha casa e, mesmo assim, tinha tudo organizado: nota fiscal, CGC [Cadastro Geral de Contribuintes, substituído pelo CNPJ], tudo. Depois comprei uma casa de fogos, que foi alvo de um incêndio. Anos de trabalho foram consumidos pelo fogo, mas sempre fui um homem honesto em minhas atitudes e toda a comunidade ajudou a me levantar. Passei a conhecer um lado espiritual da minha vida. Não sofri impacto, tristeza e nem aborrecimento. Comecei uma nova loja e fiquei nela até vendê-la recentemente. Meu novo comércio era de artigos religiosos de umbanda. A princípio, eu era descrente e não acreditava nessas coisas, mas abracei esse meu lado espiritual.
Qual o segredo para a longevidade do seu negócio?
Não tem segredo. Eu apenas vivi. Nasci em Jaboticabal, fui criado em Catanduva e cheguei a Prudente no dia 4 de outubro de 1954, carregando uma maleta de papelão – naqueles tempos, costumavam fabricar umas malas de papelão. Eu não tinha dinheiro nem nada, mas fui muito bem recebido por esse povo bom, que sempre me respeitou e a quem respeitei também.
Por que o senhor decidiu que havia chegado a hora de parar?
O fator idade foi o que mais pesou. Sou velho, estou com 90 anos e já caindo aos pedaços. Vendemos a loja para poder descansar – não por causa da freguesia, porque os clientes eram ótimos e o ramo era muito bom. Eu tinha que parar, pois não estava aguentando mais, minhas pernas estão ruins. Vendi para uma japonesa que trabalhava na loja vizinha. Meu antigo comércio está em boas mãos.
O comércio prudentino passou por grandes transformações do princípio até agora?
Quando cheguei aqui, Prudente era uma cidade pequena e o comércio mais ainda. Lembro que, naquela época, fui buscar empregado em Catanduva para trabalhar na cidade, porque não tinha mão de obra aqui. Trabalhei em algumas firmas antes de começar meu negócio em casa e vi a cidade evoluir até se tornar esse monstro que é hoje. Acho Prudente um município maravilhoso e fantástico, cujo comércio se expandiu em todos os setores. Muitas lojas fecharam, outras se abriram, mas o comércio em geral permanece.
Como manter o público fidelizado por tanto tempo?
A freguesia nunca me faltou e continua lá dentro, pois sempre prezamos pelo respeito e a dignidade dos fregueses, que são a matéria-prima do estabelecimento. O comércio é feito por eles. Você seria capaz de tocar uma firma sem freguês? Não seria. Tanto que, quando alguém chegava para trabalhar na minha loja, levava esse funcionário até meu escritório e explicava que o importante ali não era ele nem eu, mas o cliente, porque era quem dava o dinheiro para comprarmos nosso alimento e nossas roupas. O freguês deve ser tratado com amor, carinho e tudo que há de bom, pois sem ele não somos nada.
O senhor sempre quis ser comerciante ou tencionava seguir outra profissão?
Não, eu nasci para isso. O passado é uma coisa difícil de acreditar. Antigamente, um garoto com seis anos já trabalhava. Quando eu tinha essa idade, fui até a farmácia comprar um remédio para a minha irmã e conversei bastante com o farmacêutico. Ao voltar para casa, falei para a minha irmã que o homem havia me tratado bem e ela pediu para que eu refizesse o caminho e pedisse serviço para ele. Na época, todo mundo trabalhava, então consegui o emprego. Do ramo farmacêutico, migrei para uma casa de ferragem e, mais tarde, fui funcionário de uma rede varejista até vir para Prudente. Naqueles tempos, não havia direito trabalhista. Você era escravo: não tinha férias, décimo terceiro ou qualquer garantia. Se fosse demitido, ia embora sem nada. Só depois que foi criada a legislação trabalhista e o empregado começou a ser respeitado, pois até então era tratado feito lixo.
Em algum momento, pensou em desistir do comércio?
Eu nasci para isso. Se não fosse o comércio, ia para onde? Nunca pensei em abrir mão do meu trabalho. A minha loja foi uma dádiva de Deus. Por causa dela, nunca faltou nada para a minha família, sempre tivemos fartura e conseguimos alimentar e educar nossos filhos. Tudo que consegui na minha vida foi por meio da loja e devido ao esforço da minha esposa, sem a qual eu não seria nada. Esta mulher é um gigante. Ela não gosta que eu a elogie, mas elogio, sim, porque minha esposa é tudo de bom que tenho na minha vida. Sem ela, eu seria muito infeliz, pois a estrutura de um lar é a mulher. Se você se casou bem, pode ter certeza que casou com a felicidade. Se não se casou, vai haver sempre aborrecimento no seu casamento. A Eva foi uma santa que Deus me deu. Um dia, estava deitado na cama pensando e Deus chegou para mim e confidenciou: “Escuta, vou arrumar uma mulher para você. A melhor coisa do mundo”. E, de fato, Ele me deu. Para mim, a felicidade do casamento está na mulher, que é o ser humano mais importante da vida. Para nascer, dependemos dela. Tem muita gente que pensa que a mulher é um objeto qualquer e a maltrata como se ela realmente fosse, mas eu não aceito.
Quais os principais desafios de ser comerciante?
Nunca tive problema nenhum. O meu ramo era muito gostoso e, por ser voltado a artigos de umbanda, tinha outro tipo de freguesia. Muita gente que desconhece essa religião pensa que a umbanda está associada à macumba ou feitiçaria, mas não há nada disso. Eu adotei um sistema na minha firma que deveria ser expandido em todos os lugares: o comerciante não pode ter religião e precisa saber respeitar todas elas. Acima de tudo, respeitei a pessoa humana, seja travesti, negro, branco ou remendado. Para mim, toda vida é igual. Não olho a pessoa pelo tamanho do corpo, posição ou cor. Olho o ser humano. Atendi muitos negros honestos e muitos brancos sem-vergonha e ladrões. Nunca deixei de apertar a mão do negro e aperto com o mesmo calor e carinho que aperto a de um branco. Muita gente pensa que é superior pelo fato de ser branca, mas vai para o mesmo lugar que o negro: o cemitério. Nunca fui racista e acho o cúmulo alguém ser, pois o branco é culpado pelo negro ser escravizado, explorado, roubado, judiado e jogado fora. A minha filosofia de vida é essa.
Quais são os planos para daqui em diante?
Agora é esperar a morte. O túmulo já está pago e não devo nada [ri]. Se der, a gente faz um passeio antes. Além disso, pretendo cultivar as amizades que fiz no comércio, pois mantive as verdadeiras. Sonhos eu não tenho mais, a não ser ganhar na quina, porque ainda aposto todos os dias.