Há pessoas que nascem predestinadas a uma missão, enquanto outras descobrem a sua vocação no meio do caminho. O diretor administrativo do HR (Hospital Regional) Doutor Domingos Leonardo Cerávolo, em Presidente Prudente, frei Jacó da Silva, 32 anos, está enquadrado no segundo caso. Nascido em Araçatuba (SP), o mais novo de três irmãos nunca teve uma formação religiosa e só entrou em contato com o cristianismo aos 10 anos, quando se mudou para uma propriedade rural e começou a frequentar a igreja das imediações, onde passou a fazer o curso de catequese e a se interessar pelas ações sociais desenvolvidas pela comunidade. Mesmo envolvido nos projetos, ele sentiu pela primeira vez que ainda faltava algo para se sentir completo. A revelação surgiu em dezembro de 2006, quando se encontrou com um antigo amigo da igreja que lhe contou estar no seminário. “Quer dizer que uma pessoa comum como eu pode estar no seminário?”, pensou com admiração o garoto.
Nas primeiras semanas de janeiro do ano seguinte, frei Jacó, sem o consentimento da mãe, tomou coragem e decidiu procurar seu pároco para demonstrar a vontade de seguir a vida eclesiástica. Na época, o jovem tinha a agenda cheia. Além de estar em um relacionamento sério, ele trabalhava e fazia o curso de Administração com habilitação em Comércio Exterior. Para compreender melhor o caminho que começava a se abrir em sua vida, seria preciso arranjar mais tempo e espaço, o que demandaria abrir mão de algumas coisas. Na primeira oportunidade, fez um acerto com seu patrão e deixou o emprego. Depois de uma festa de carnaval ao lado da namorada, sentiu que já não pertencia mais àquela realidade e terminou o relacionamento. A faculdade, por sua vez, só durou mais um semestre. Em julho, durante um evento religioso em São José do Rio Preto (SP), conheceu a Fraternidade São Francisco de Assis, da qual se tornaria membro e que o conduziria até o HR, instituição que administra desde 2014.
A princípio, o frei pensou que levaria uma vida missionária simples, mas foi surpreendido com uma reviravolta: após obter o hábito e aposentar seu nome civil, Luciano, desembarcou em Primavera, distrito de Rosana, onde recebeu sua primeira missão no dia 14 de dezembro, quando se comemora o Dia de São João da Cruz, de quem é devoto. Sem qualquer experiência, ele cuidaria da gestão do Hospital Estadual de Porto Primavera, que lhe daria boa parte do conhecimento necessário antes de ser transferido para um complexo ainda maior.
O Imparcial: Quando o senhor recebeu a notícia de que se tornaria o novo diretor administrativo do HR?
Frei Jacó: Em 2014, eu estava prestes a concluir a faculdade de Administração, que recomecei do zero, e o novo prédio do Hospital Estadual de Porto Primavera estava pronto. Sendo assim, a fraternidade achou por bem, depois de cinco anos, fazer a minha transferência para outra unidade. Foi quando me fizeram a proposta de vir para o Hospital Regional de Presidente Prudente, uma instituição 10 vezes maior que o hospital ao qual estava habituado. Enquanto lá havia 250 funcionários, aqui eram 2,4 mil. Falei que só entrava se alguém me levasse pela mão. Apesar do receio, cheguei a Prudente no dia 15 de outubro, Dia de Santa Teresa de Ávila, a pessoa que ajudou São João da Cruz em seu processo de conversão. Para quem não tem fé, esta pode ser uma mera coincidência, mas, para mim, era pura providência de Deus: minha primeira missão ocorreu no Dia de São João da Cruz, enquanto a segunda, no Dia de Santa Teresa de Ávila. Inicialmente, encontrei muitas dificuldades. Meus primeiros seis meses foram dedicados a conhecer o local – e foram seis meses de um choque interior muito forte, porque três frades já tinham passado por aqui, todos com graduações e longa experiência na gestão de hospitais, ao passo que eu ainda não tinha 30 anos de idade e acabara de me formar na faculdade de Administração. Aqui, além de ser um espaço mais amplo, é um hospital-escola e recebe uma atenção muito maior do que o de Porto Primavera, logo, tudo aquilo que você faz ou pensa em fazer atrai muitos olhares. Ao mesmo tempo em que há gente para aplaudir, também há para criticar. Então, foi um período marcado por um duelo interior muito grande. Às vezes, eu até me questionava: “Estou fazendo alguma coisa aqui? Será que vale a pena?”.
E quando decidiu que era o momento de agir em favor do crescimento da unidade?
Uma das primeiras ações nesse sentido foi ir atrás dos grupos de trabalhos com os quais encontrávamos mais dificuldades. O primeiro, por exemplo, foi a Vigilância Sanitária Estadual, que só se comunicava por papel. Estreitamos os laços e deixamos o órgão mais próximo. Agora, você liga e sabe que tem alguém ali. A imprensa também caía em cima, então, fomos ao encontro dos meios de comunicação. Chamamos ainda a nossa Assessoria de Comunicação e orientamos a encher a imprensa de notícias positivas: “Não é para inventar nada. Só mostrar aquilo que fazemos”. Visitamos entidades e hospitais para conhecer seus trabalhos e convidamos as equipes para que conhecessem os nossos. Internamente, tudo o que era promovido pelo HR não tinha adesão, pois as pessoas não tinham o prazer de participar. Também não oferecíamos nenhum evento relevante para a comunidade, portanto, me propus a pensar em algo diferente. Foi quando lançamos o Show de Prêmios do Lar São Francisco de Assis na Providência de Deus, que, a princípio, era para ser algo pequeno, mas que foi um sucesso já na primeira edição. Hoje, já realizamos a terceira e contamos com 500 voluntários. Além disso, implantamos há um ano e meio o Projeto Missão Amor que Cura, por meio do qual percorremos uma vez por mês pontos da região para promover saúde e bem-estar para a população. São mais de 400 voluntários que nos acompanham. De forma geral, a partir do momento que entenderam nosso projeto, as pessoas passaram a enxergar o que é a nossa instituição, responsável por gerar 3 mil empregos diretos e indiretos e realizar 70 mil atendimentos por mês.
Qual a fórmula para administrar com êxito um hospital?
A minha forma de administrar é ficando muito próximo das pessoas. No meu WhatsApp, converso diariamente com o serralheiro, o jardineiro, o coordenador médico e o deputado de igual para igual. Entendo que só estando ao lado das pessoas é que você conhece a real situação do local, já que posso pensar em um modelo de trabalho que seja ideal para mim, mas não é o que os outros esperam. Por outro lado, num universo de 3 mil pessoas, a chance de alguém se sentir lesado ou injustiçado é muito grande. Sendo assim, ao se manter próximo e deixar a porta da sua sala aberta, você permite que as pessoas relatem o que acontece. Nesse contexto, muita gente foi resgatada, reconheceu o valor que possui e passou a ter admiração pelo seu trabalho. Infelizmente, peguei um período difícil da gestão, porque, ao chegar aqui, o Brasil entrava num recesso econômico. O resultado é que não tivemos novos investimentos e fomos fazendo gestão com o que tínhamos. Mesmo assim, implantei um modelo de reforma do hospital em todos os departamentos. No Ambulatório, fizemos uma contenção de despesas de 30% e isso foi importante, pois toda a economia gerada automaticamente se tornava um investimento em estrutura e atendimento.
A princípio, o senhor tinha receio de realizar o seu trabalho dentro de um hospital. Hoje, deixaria este ambiente ou sente que encontrou a sua missão dentro dele?
Hoje, a minha vida é esta. Entendo que se eu conseguir, junto com a minha equipe, executar um trabalho de economicidade, um bom planejamento estratégico e uma boa gestão de recursos financeiros e humanos, ajudarei mais pessoas do que se estivesse limpando pacientes e fazendo curativos. Quando decidi me tornar frei, meu trabalho não seria este. Eu não sabia que teria que administrar alguma coisa, me relacionar com o público e comparecer a audiências judiciais. Mesmo estando dentro de uma fraternidade, isso nunca passou pela minha cabeça. As realidades foram simplesmente acontecendo e nosso dever era assumi-las e abraçá-las. No começo da minha vida como frade, eu não tinha um centavo no bolso e sequer podia andar de avião ou ter um celular, mas as coisas foram amadurecendo e amadureci junto.
Mas você não esperava que a vida missionária envolvesse questões administrativas?
Não. Pensava que eu sairia de casa, moraria em uma fazenda, cuidaria de hortas e jardins e visitaria os doentes. Quando me tornei frei, a minha realidade era outra e a vida dos frades não era tão dinâmica quanto hoje, mesmo que exercêssemos muitos trabalhos. Hoje, a minha vida é muito mais laical do que eclesiástica. Convivo muito mais com pessoas leigas do que religiosas. Acordo às 5h45, faço a oração em comunidade às 6h, reservo um tempinho em seguida para a oração pessoal, depois tomo meu café da manhã e chego ao hospital às 6h50. Este é o momento espiritual que tenho. O resto do dia é laical. Claro que, durante a semana, participo da Santa Missa durante a noite ou de celebrações em grupos e, aos fins de semana, dedico um tempo maior para a espiritualidade, mas boa parte dos dias é voltada para este convívio com os leigos.
O senhor mencionou uma série de transformações implantada no hospital. Quais são os futuros projetos voltados à instituição? Acredita que, por ser um hospital regional, há muito que evoluir em termos de estrutura e atendimento ao público?
Muitas transformações que aqui ocorreram se deram pelo tempo e necessidade. Inicialmente, eu não projetei todas as mudanças realizadas. Elas ocorreram gradualmente e nós encontramos meios de fazê-las acontecer. No entanto, temos, sim, um planejamento anual, sendo que o do próximo ano já está pronto. A começar pelo fato de que, em 2019, o HR deixará de ser uma Unacon [Unidade de Alta Complexidade em Oncologia] para se tornar um Cacon [Centro de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia], já que contará com assistência radioterápica. Além disso, construiremos uma nova UTI [Unidade de Terapia Intensiva] Pós-Operatória e possivelmente iniciaremos a realização de transplantes, que já dispõe de toda a documentação levantada e equipe contratada e treinada, mas ainda requer credenciamento. A Secretaria Estadual de Saúde nos informou que, por questões burocráticas, não conseguiríamos avançar neste ano, porém, já estamos prontos e à espera do aval em 2019. Não podemos nos esquecer ainda da implantação de uma unidade da Rede Lucy Montoro para a reabilitação de pacientes.
Encarregado de administrar um hospital com o porte do HR, há momentos em que o senhor gostaria de fazer um trabalho menor, conforme planejava quando decidiu se tornar frei?
Confesso que sinto falta de algo mais simples, mas procuro não pensar muito na grande responsabilidade que é administrar um hospital. Não costumo ter noção disso durante a minha rotina aqui dentro, pois sinto que estou fazendo o dever de casa, mas a partir do momento em que estou em uma reunião importante na capital, consigo mensurar o impacto do nosso trabalho. O HR abriga 80% de todos os leitos do SUS [Sistema Único de Saúde] no oeste paulista e 70 mil pessoas passam mensalmente por aqui. É muita gente. Se eu delibero que toda clínica terá determinado modelo de porta, preciso saber que isso será observado por milhares de pessoas, então, a minha decisão tem que ser sempre pensada para os outros. Com a chegada do verão, a minha briga é que todo ar-condicionado esteja funcionando. Já no inverno, fazemos uma varredura no hospital inteiro para garantir que todos os 550 leitos tenham acesso a um chuveiro com água quente, pois, ainda que o hospital possua um vigilante, uma recepcionista e equipes realizando um trabalho adequado, uma comida mal preparada ou banho gelado pode anular todo o atendimento. Sendo assim, é preciso pensar sistematicamente e tratar todo mundo com equidade.
O senhor promoveu algumas mudanças no hospital. Mas quais foram as mudanças que o HR trouxe para a sua vida? Você se sente um homem transformado?
Ninguém passa por um lugar sem deixar nada, assim como ninguém passa por um lugar sem levar nada. Eu acredito que muito do que sou hoje deve ser atribuído ao que aprendi no Hospital Regional. Devo toda a minha visão de mundo a este hospital. O fato de ser um ambiente também acadêmico, que respira pesquisas e treinamentos, também me motivou a não ficar parado e procurar mais capacitação própria. Posso dizer seguramente que o HR formou – e muito – o frei Jacó, que seria outra pessoa sem essa grande escola.
Quais são os sonhos que cultiva para a sua vida pessoal e para a instituição que administra?
Para o HR, sonho que a instituição caminhe cada vez mais em busca da sua vocação, que é fazer a saúde de alta complexidade, isto é, ofertar mais cirurgias cardíacas, neurológicas, transplantes e procedimentos minimamente invasivos. A ideia é que tudo isso seja feito dentro de uma gestão compartilhada, harmônica e por meio da pacificação entre os departamentos, onde os egos devem ser reduzidos para que os dons sejam mais explorados. Já para mim, tenho o desejo de me tornar sacerdote e, com isso, oferecer mais um serviço para a comunidade.
O senhor relatou que sua mãe foi contrária à sua vida missionária e até chorou quando decidiu segui-la. E, hoje, como ela se sente em relação ao que o senhor se tornou?
Minha mãe se manteve relutante por três anos. Lembro que, na primeira visita que fez a Jaci [SP], onde tive minha formação, mandou que eu juntasse todas as minhas coisas e chegou até a brigar com os freis. Foi somente quando me visitou em Primavera que ela compreendeu a minha decisão. Hoje, ela diz com a boca cheia que tem uma satisfação muito grande de me ver frei.