Virado à Paulista, mesmo!

OPINIÃO - Maurício Waldman

Data 16/05/2018
Horário 09:32

Crescentemente a valorização da herança cultural regional tem conquistado espaço no imaginário social. Neste prisma, a valorização do acervo culinário de grupos e comunidades passou a desfrutar de merecida atenção. Assim, explica-se que entidades como a Unesco (Órgão das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura), assumissem interesse pelo tema, com a criação, em 2003, da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, que inclui a herança gastronômica.

Nesta senda, o Virado à Paulista, prato tradicional do Estado de São Paulo, recebeu em janeiro de 2018, chancela do Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico), se tornando patrimônio imaterial paulista, o primeiro tombamento do gênero a consagrar um prato do Estado. Receita única, o Virado à Paulista reflete ampla coleção de modelagens culturais integradas à história de São Paulo. Contrariando a noção da imutabilidade cultural, este prato adotou muitas contribuições das etnias que povoaram o Estado.

Destaca-se a marca mameluca, ou seja, dos mestiços de índios e portugueses, que no passado, formavam a base cultural do Estado. Note-se que, aos mamelucos coube o talhe de elemento cultural de raiz, sem o qual seria impossível pensar o surgimento desta receita única que é o Virado à Paulista. No manjar é clara a tradição do toucinho e do cozido, tão a gosto da culinária portuguesa. Mas no Brasil, o cozido de feijão foi texturizado com farinha de milho (ou de mandioca), calco indígena resguardado pela cultura mameluca.

A mais ver, o tripé gastronômico formado pelo feijão com toucinho, farinha de milho ou de mandioca, recepcionou adições como a bisteca de porco (dantes de carne de cateto, o porco do mato), a couve e ovo frito (apensos portugueses), banana à milanesa, torresmos, linguiça calabresa, pimenta e o arroz. Sublinhe-se que a pauta que compõe o quitute conota duas influentes vertentes culturais, a italiana e a africana. No caso dos oriundi, isto é patente na banana à milanesa, tal como na Itália os alimentos são empanados.

Ademais, atente-se para a presença da calabresa, que embora não seja, contrariando arraigado senso comum, um petisco propriamente italiano (na realidade, um tipo de embutido criado no bairro paulistano do bexiga por imigrantes calabreses), isto não desmente a participação peninsular na iguaria. Já os africanos, afirmaram a banana, pimenta, torresmos e o arroz na montagem do prato. Embora os três primeiros itens fossem de trânsito corrente noutros grupos, a consolidação do prato teve nas gentes da África influencia decisiva, sem a qual o Virado à Paulista não existiria.

Em especial, esta nota está materializada no consumo do arroz. Brasileiro não come arroz por conta de qualquer influência oriental. Antes, é um hábito alimentar difundido por africanos, consumidores do cereal desde milênios, que deste modo, educaram o paladar dos colonizadores.

Assim sendo, uma intrincada rede de evocações socioculturais por si só interdita a tese que adota os bandeirantes como criadores do prato. Na realidade, o Virado à Paulista resulta de profundos empréstimos culturais, matizados por um recorte regional e popular. Portanto, com base na conhecida noção gastronômica pela qual somos o que comemos, o Virado à Paulista não é apenas um manjar. Compondo, faz séculos, a identidade culinária do Estado de São Paulo, é também parte indissociável do modo de ser e da história dos paulistas.

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