Tempo para cada coisa

OPINIÃO - Sandro Rogério dos Santos

Data 21/05/2018
Horário 07:54

Que é o homem para dele se lembrar com tanto carinho? (Salmo 8,5). A vida humana é um só instante, uma hora passageira, é um só dia que me escapa e me foge (Santa Teresinha). Para tudo há um tempo, para cada coisa há um momento debaixo dos céus; tempo para nascer, e tempo para morrer (Ecl 3,1-2). A consciência da existência nos faz sofrer e a um só tempo nos liberta. É um processo que dura talvez a vida toda. Quem passa pela vida sem tomar consciência dela pode viver um teatro. Na impossibilidade de controlar os tempos e os momentos, as ações que nos fazem ser quem somos, me parece, nalgum grau, é possível controlar-se diante dos acontecimentos. Algo similar ao navegador que não podendo mudar os rumos dos ventos, ajusta as velas da embarcação para aproveitá-lo a seu favor.

Leocir Pessini, no opúsculo “Morrer com dignidade” (Ed. Santuário), me destampou para um tempo não tão distante. Diz ele “não se morrer mais como antes” e sustenta a afirmação com a citação a seguir. Como se morria antigamente: a morte era esperada (“jazendo no leito o enfermo...”). Sabendo do seu fim próximo, o moribundo tomava suas providências (reunia a família..., expressava seus últimos desejos...). Não se morria sem ter tido um sinal natural ou, então, por uma convicção íntima. Era algo simples, e seu reconhecimento era espontâneo; não havia como negar a realidade ou fazer de conta.

A morte era uma cerimônia pública organizada pelo próprio moribundo. O quarto do moribundo era um local público, onde se entrava livremente. Era importante que os parentes, amigos e vizinhos estivessem presentes. As crianças também estavam. Era notável a simplicidade com que os ritos da morte eram aceitos e cumpridos sem dramaticidade ou emoção excessiva. A vela acesa na mão do doente agonizante, as orações ininterruptas no velório, missa de corpo presente, a procissão até o cemitério, o luto (roupas pretas). Convivia-se naturalmente com a morte, que era aceita como parte do ciclo da vida. A incumbência de anunciar a morte era reservada ao sacerdote. A morte era um ato religioso, passagem deste mundo para o Reino de Deus, e era missão dos ministros da Igreja assistir o moribundo.

Atualmente, a morte já não é mais tão presente e tão familiar. Tornou-se vergonha. Aqueles que cercam o moribundo tendem a poupá-lo e ocultar-lhe a verdade de seu estado. A verdade começa a ser um problema. Já não se morre mais em casa cercado dos entes queridos (talvez, espalhados pelo mundo), mas no hospital. Nesta instituição, a morte não é mais ocasião de uma cerimônia ritual que o próprio moribundo preside, pois está quase sempre inconsciente... A manifestação de emoção não é vista com bons olhos. Comoção às escondidas. Não se usam mais as roupas escuras, sinais de luto. Uma dor demasiado visível é sinal de má educação.

A morte tornou-se no século 20 “um tabu e substituiu o sexo”, que deixa de ser o principal interdito. Antigamente dizia-se às crianças que elas nasciam de dentro de um repolho ou vinham pela cegonha, mas participavam da cena de despedida da vida à cabeceira do doente moribundo. Hoje, elas são iniciadas bem cedo na fisiologia do amor (fala-se com naturalidade da sexualidade), mas quando não veem mais o avô ou a avó e perguntam onde estão, recebem como resposta: “estão descansando” num belo jardim de flores ou viraram uma estrelinha. O ser humano deixou de ser senhor da morte. A morte, agora, é um fenômeno técnico, brutal.

Seja bom o seu dia e abençoada a sua vida. Pax!!!

 

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