O espião que caiu do céu

OPINIÃO - Maurício Waldman

Data 22/08/2018
Horário 05:10

Os anos de 1960 não auguravam nada de bom no cenário internacional. A disputa Estados Unidos-União Soviética, potências preparadas para uma guerra que poderia ser a última a ser travada na Terra, prosseguia a todo vapor.

Neste contexto, pipocavam denúncias de espionagem. Os dois países estavam envolvidos numa atmosfera propícia a descobrir manobras pérfidas do inimigo, mesmo que não existissem. No mais, seria ingenuidade imaginar que a rixa ficasse restrita à diplomacia e que ambos se eximissem de golpes baixos contra o adversário.

Os EUA se sentiam ameaçados pelos soviéticos. Em 1957, não bastasse o crescente prestígio da URSS, que inclusive atraíra Cuba como novo aliado, o satélite Sputnik, uma façanha tecnológica a toda prova, transformou o cosmos numa vitrine do socialismo. A cúpula militar dos EUA alarmou-se: “E se a URSS colocar bombas nucleares em órbita?”

É neste cenário que ocorre o episódio com o avião U-2 e o piloto Gary Powers, iniciado quando a CIA, em flagrante desrespeito à lei internacional, ordenou voos noturnos no interior da URSS para identificar instalações vitais da sua máquina de guerra. A meta era óbvia: coletar dados para preparar um ataque nuclear surpresa contra a União Soviética, destruindo-a de um só golpe.

Assim, em Maio de 1960, Powers decola de base secreta no Paquistão para violar o espaço aéreo central da URSS, fotografando tudo que encontrava no caminho. Não escapou nem mesmo o futuro sítio de Baykonur, a maior base espacial da URSS.

Nikita Krushev, o premier soviético, sabia dos voos, mas manteve duro silêncio. Na ocasião, seu país não tinha como abater o U-2, que voava na estratosfera. Contudo, tomado de fúria cobrou do alto-comando: “Façam mísseis e derrubem o desgraçado!” (o termo é pura gentileza jornalística: o que Krushev disse é impublicável).

O pedido de Krushev foi atendido à risca. Todos temiam pelo gênio rancoroso do líder, ex-auxiliar direto de Stalin. Seria melhor não contrariar o chefão e dar um jeito de derrubar o espião.

Dito e feito: em Maio de 1960, Gary Powers voava na pretensa segurança da estratosfera quando de repente, sentiu um baque. Era o altivo U-2 partido em pedaços nos céus dos Urais, bem no meio da URSS. “Derrubamos o desgraçado!” (termo jornalístico, idem), informaram os exultantes militares ao chefe.

A URSS anunciou a interceptação do U-2. Mas calou sobre os resíduos da fuselagem do avião e também não fez qualquer menção à captura de Powers, que contrariando ordens da CIA, não se suicidou, nem destruiu documentos em seu poder.

Era um ardil de Krushev. Previa, como de fato ocorreria, que os EUA negariam a missão, para mais adiante, mostrar tudo o que tinha nas mãos. Dito e feito novamente: a Agência TASS, órgão oficial de notícias, divulgou então fotos a rodo de Powers algemado e para completar, montou-se uma exposição em Moscou aberta ao público exibindo enormes chapas chamuscadas do U-2.

Seguiu-se um vexame para os EUA, sem meios de esconder o fiasco. Em Moscou, Powers teve julgamento cinematográfico, coberto em minúcias pela mídia estatal, que rugia rios de indignação. Condenado em Agosto de 1960 para ser solto dois anos após por Rudolf Abel, espião da KGB nos EUA, Powers morreu em 1977 após anos de ostracismo, paradoxalmente num acidente aéreo.

Porém, nada disso serviria para laurear de inocência os soviéticos. Durante a ditadura de Stálin, milhões foram desovados na Sibéria por falsas acusações de complot, espionagem e alta traição. Krushev, o sucessor, abrandara o regime, mas que na essência, mantinha todos os cidadãos sob suspeita.

Logo, o caso U-2 tão só demonstra que a URSS não foi a única a gerar uma folha-corrida de malfeitos. Em suma: Powers caiu do céu para ser tragado pelo inferno dos conflitos globais. Um torvelinho onde a inocência não tem lugar.

 

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