Maria não conseguia parar de comprar sapato

Maria comprava sapato todo dia. Achava que o que já possuía era insuficiente. Sempre o da vitrine era melhor. Maria sentia um grande vazio quando o tempo passava e nenhum sapato comprava. Achava que sua angústia originava pela falta de um sapato novo. Comprava sandálias, porque tinha muito sapato. Com muitas sandálias comprava tênis por sentir falta. Com sentimento de algo, que não sabia explicar, só que era muito desconfortável, corria na loja de calçados. Baixos, rasteiras, sapatilhas, chanel, scarpin, slingback, mule, salto alto, médio e baixo, nas alturas por alguns minutos, permanecia. “Ah! Que alivio!”.

Por alguns segundos sentia-se como uma rainha. Feliz, eufórica e entorpecida seguia para a casa correndo, a fim de contemplar e viver esse momento único, mas que sabia que iria durar pouco. Maria percebia que em sua casa, no seu armário, já não havia mais lugar para armazenar seus calçados. Muitos pensamentos borbulhavam em sua mente, assim como: “Mas que casa pequena! Que quarto pequeno! Preciso de um closet só para os meus calçados. Tem algo errado com o planejamento do meu armário. Preciso de um quarto ou casa maior para acondicionar meus calçados”.

Assim, Maria trocava de casa para poder comprar mais sapatos. Maria calçava seus pés muito bem. De couro grosso, evitava que algo pudesse aproximar e toca-los. A tartaruga também tem um casco duro para se proteger. Quando sente ou percebe que algo ameaçador aproxima, entra em seu casco e não sai mais. Por que para algumas pessoas tudo parece ameaçador? Por que precisamos nos armar de forma defensiva. Acho que o tempo moderno está trazendo muitas armas para a gente evitar amar. Acho que Maria foge para a compra de sapatos novos de couro grosso, para proteger-se. Assim não vai sofrer. Compras aliviam, e faz jogar para bem longe a dor do acaso, do viver, do perder e da frustração.

Para que aproximar, aprender com a experiência, emocionar, viver a intimidade, se há perdas? Os sapatos protegem os pés. Os pés são nossa base central de sustentação. Significa autonomia, corte do cordão umbilical e independência. O bebê começa a andar, aproximadamente com 12 meses. Andar é um processo complexo que envolve cesuras. Saímos do colo protetor dos pais. É o início da trajetória para uma vida ereta e vertical usando dois pés. Ao engatinhar andamos com quatro “pés”. E, quando envelhecemos, vamos usando a bengala, formando três pés.

Muitas vezes, quando esse processo de corte do cordão umbilical foi traumático ou conflituoso, nossa fragilidade é na base e simbolicamente permanecemos “descalços”. Nenhum sapato será suficiente. Precisamos “calçar” nosso mundo interno mental, de dentro para fora primeiro, depois o externo e concreto. Tempos modernos nos desnuda em um despreparo constante na direção do operativo, mecânico, automático e concreto. Não viver as experiências emocionais, acaba provocando desequilíbrio. Não adianta ter um arsenal de sapatos se não conseguimos ficar de pé.

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