Lixo visível, racismo invisível

OPINIÃO - Maurício Waldman

Data 26/07/2018
Horário 05:30

No Brasil, o conceito de que o lixo está articulado com a questão ambiental é, nos dias de hoje, uma nota de senso comum. Porém, a ideia de que o lixo e os impactos ambientais estejam por sua vez associados com a discriminação racial segue ignorada por ampla maioria da comunidade acadêmica e da opinião pública. Isto, à revelia do tema ter se tornado, faz décadas, numa prodigiosa vertente de pesquisas em muitos países. Quase 20 anos atrás, pesquisadores como o sociólogo estadunidense Robert Bullard, pai da concepção de racismo ambiental, subscreviam que este ocorreria como resposta a iniquidades ambientais, ameaças à saúde pública, constrangimentos diferenciados e mau tratamento recebido pelos pobres e pelos não-brancos.

Mais ainda, um movimento de justiça ambiental ganhou corpo nos anos 1970, no fragor das lutas pelos direitos civis da comunidade afro-estadunidense, tendo à frente a icônica liderança de Martin Luther King. Sublinhe-se que a visita de King, em abril de 1968, à cidade de Memphis, no Tennessee, quando foi morto por supremacistas brancos, tinha por meta obter melhores condições de trabalho para os lixeiros negros da cidade, cuja saúde era exposta a sérios perigos.

Aliás, colaboradores de primeira hora de Martin Luther King estiveram entre as centenas de pessoas levadas à prisão no célebre conflito que, em 1982, no Condado de Warren, na Carolina do Norte, estopim do movimento de justiça ambiental. Neste rincão, habitado majoritariamente por cidadãos pobres, as autoridades decidiram instalar um aterro para PCBs (Policlorobifenilos), um POP (Poluente Orgânico Persistente) extremamente tóxico para a saúde humana e ao meio ambiente, a ser inaugurado com desova inicial de 6 mil caminhões lotados de solo contaminado com PCBs.

Revoltados com a decisão, praticamente todos os 16 mil moradores de Warren, 60% dos quais afrodescendentes, se organizaram em repúdio à intenção dos gestores em criar, de modo autocrático, uma área de descarte que acarretaria um uso localmente indesejável do solo. Após seis semanas de pacíficas marchas de rua, o condado se tornou foco de um clamor nacional, com mais de 500 pessoas detidas, as primeiras prisões na história dos EUA por conta de conflitos quanto à criação de área de confinamento final de resíduos. Os protestos de Warren popularizaram a expressão NIMBY, acrônimo de “Not In My BackYard”, literalmente “Não no meu quintal”, que se tornou palavra de ordem de vigoroso movimento de massas, apoiado por vasto segmento de opinião em todos os EUA.

Assim, a consciência de que os riscos ambientais se conectam com notórias disparidades sócio-raciais se tornou verdade irrefutável. No mais, impactos desiguais das disfunções ambientais escancaram-se em centenas de áreas poluídas e por agravos que abalroam, em especial, grupos e etnias sociologicamente minoritárias. A influente publicação “The Nation” certificou, em 2016, que a linha de definição racial é o mais importante indicador dos habitantes de áreas próximas a sítios contaminados: 56% da vizinhança de depósitos de lixo são negros, também privados de água potável e de saneamento duas vezes mais, em média, do que a população branca.

Em paralelo, 95% das petições contra poluidores encaminhadas por negros são refutadas pela poderosa EPA (Environmental Protection Agency), a agência de proteção ambiental dos Estados Unidos. Contudo, sendo verdadeiro que quando uma contradição conquista expressão trocamos a contradição pela comunicação, situações de injustiça, uma vez laureadas de visibilidade podem, tal como nos EUA, serem discutidas e enfrentadas. Dado este rigorosamente ausente na realidade nacional e nos estudos brasileiros sobre o lixo.

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