Estrutura das mil e uma noites

Dia 12 de junho é o Dia dos Namorados. Momento de extremo romantismo. Deveria estar presente sempre, em todas as relações. As pessoas, de um modo geral, estão com muitas dificuldades em criar laços e envolver-se de forma emocional. Algo quase impossível. As relações vinculares estão ficando esquecidas. Atualmente, os encontros vêm marcados por um rápido envolvimento superficial, de total entrega e que, muitas vezes, estende-se aos aspectos corporais mais íntimos. A principal característica desse encontro refere-se ao total desconhecimento dos envolvidos no dia seguinte. Na maioria das vezes, o relacionamento acabou ali mesmo. Nada restou.

Toda essa dinâmica me remete ao maravilhoso conto de fadas de origem hindu e persa, que pode ser datado nos primórdios do décimo século, chamado “Mil e uma noites”. Claro que sob o ponto de vista psicanalítico, ele é muito rico para ser analisado em diferentes vértices. Faço então uma ponte com as relações amorosas da atualidade e suas vicissitudes.

A estória básica, segundo o psicanalista Bruno Bettelheim em seu livro “A psicanálise dos contos de fadas”, conta que o rei Shariar está profundamente desiludido com as mulheres e é um homem furioso porque descobriu não só que sua esposa o traía com seus escravos negros, como também, que a mesma coisa ocorrera a seu irmão, o rei Shazeman. Quando interrogado pelo rei Shariar sobre os motivos de seu declínio, o rei Shazeman responde: “Ó meu irmão, tenho uma ferida interna”. Dado que o irmão parece ser um sósia do rei Shariar, podemos admitir que também ele sofresse terrivelmente de uma ferida interna: a crença de que ninguém poderia amá-lo verdadeiramente. O rei Shariar, tendo perdido toda a fé na humanidade, decide que daí para diante não dará possibilidade a nenhuma mulher de traí-lo, e levará uma vida apenas de prazer. Daí para frente dorme cada noite com uma virgem, que é morta na manhã seguinte. Como acontece, simbolicamente, com alguns, senão muitos relacionamentos aos quais estamos testemunhando na atualidade.

Finalmente, não resta nenhuma virgem casadoura no reino a não ser Sherazade, a filha do vizir do rei. O vizir não tem nenhuma intenção de sacrificar sua filha, mas ela insiste que deseja tornar-se “a forma de libertação”. Consegue-o, contando durante mil noites uma estória que cativa tanto o rei, que ele não manda matá-la porque deseja ouvir a continuação da estória na noite seguinte. De acordo com a estória, os dois protagonistas, um homem e uma mulher, se encontram na maior crise de suas vidas: o rei, desgostoso da vida e cheio de ódio pelas mulheres; Sherazade, temendo por sua vida, mas determinada a conseguir a libertação dele e dela.

Sherazade enfrenta sua missão moral com um plano: ela organizará as coisas de modo a poder contar para o rei uma estória de natureza tão cativante que ele desejará ouvir o resto dela e, por esta razão, poupará sua vida. E, de fato, quando amanhece e ela interrompe a estória, o rei diz consigo mesmo: “Não a matarei até ouvir o resto da estória!”. Mas suas estórias extasiantes, cuja continuação o rei deseja ouvir, adiam a morte apenas de um dia para o outro. Para a “libertação” - meta de Sherazade - é necessário mais. Uma pessoa assim, diz a estória, é capaz de libertar o mundo do mal na medida em que consegue felicidade para si e para a escuridão do outro, que acreditava não haver mais nenhuma felicidade à sua disposição.

Quando ela declara seu amor pelo rei, este declara o dele por ela. Não pode haver maior testemunho do poder de todos os contos de fadas para mudar nossa personalidade do que o final deste conto único, a estória básica de “Mil e uma noites”: o ódio assassino é transformado em amor duradouro. Pergunto: Onde estão as(os) “Sherazades”, que sabem conquistar, seduzir, envolver, amar, encantar e emocionar?. E será que atualmente só temos “reis Shariars”, que perdem totalmente a fé na humanidade? E que querem somente realizar-se de forma imediata e fugaz, deixando para trás o respeito, sensibilidade, ternura, tempo, sabedoria e amor?

Acredito que tanto as mulheres como os homens estão com medo de se envolver. O medo da perda e frustração são fatores muito importantes. Contribuem em muito para o nosso fortalecimento emocional. Em razão disso, muitos preferem a solidão. Namorar envolve uma gama de investimentos, principalmente deixar o narcisismo de lado. É mais fácil não envolver-se. É mais fácil exercitar a realização do prazer imediato. Só que no dia seguinte, o vazio se instala e torna-se presente um grande tédio e desilusão. É preciso acreditar em algo. É preciso ter menos racionalidade e viver o lado emocional nas relações. Deem oportunidade às pessoas. Aproximem-se e façam investimentos no outro. Viver a dois é uma experiência plena e saudável. E uma excelente profilaxia, prevenindo uma infinidade de doenças.

Publicidade

Veja também