A traição de Bolívar

OPINIÃO - Maurício Waldman

Data 05/10/2018
Horário 04:30

Nenhum nome da história latino-americana foi agraciado com tamanha e fervorosa devoção histórica quanto Simón Bolívar, El Libertador, cuja carreira, tonificada pelos ideais do iluminismo, da democracia e da autodeterminação, propunha a formação de uma confederação a irmanar todos os povos, grupos e etnias da América Latina. Mais de 150 anos após a morte de Bolívar, ocorrida em 1830, este ideário inspirou Hugo Chávez a lançar o bolivarianismo, proposta pautada no anti-imperialismo, na democracia participativa, na eliminação da corrupção e dos privilégios das elites, prosperando, desde os anos 1990, em grupos politicamente engajados.

Mas até onde esta agenda do bolivarianismo confere com a atuação real de Bolívar? Lembra o filósofo inglês Aldous Huxley, a memória do passado não é fixa e sequer inalterável. Assim, o passado é alvo de reconfigurações, atendendo novas definições de acordo com as conveniências de quem, e da época que o interpreta. No que justifica certificação histórica, um temário axial reportaria às posições de Bolívar diante da escravidão, que como se sabe, foi uma das estacas do colonialismo em solo americano.

Não por acaso, a mais radical das revoluções anticoloniais do continente ocorreu no Haiti, possessão francesa no Caribe que em 1791, assistiu uma rebelião incontrolável dos escravos das plantações. Voltando-se contra a metrópole e a classe latifundiária, a insurreição se alastrou como fogo em palha seca por todo o país, galvanizando fortes tensões induzidas pela dominação colonial.

Exceto a revolta de Espártaco, que estalou em Roma 1900 anos antes, a Revolução Haitiana materializou a maior insurgência de escravos da história mundial. A luta contra os franceses foi dura, longa e cruel, estendendo-se até 1803, quando na Batalha de Vertières, os haitianos assombraram o mundo ao impor esmagadora derrota ao bem armado corpo militar despachado por Napoleão Bonaparte para reconquistar a ilha.

Assim, o Haiti, país fruto de uma revolução anticolonial negra, foi coerentemente seduzido pela meta de eliminar a dominação europeia e abolir a escravatura. A fé nestes princípios encontra comprovação em 1815, quando Bolívar refugiou-se neste país após o fracasso da primeira tentativa em enfrentar o poder espanhol. Na ocasião, Pétion, presidente haitiano, lhe forneceu auxílio diplomático, dinheiro e armas para retomar a luta. Foram 4.000 fuzis, toneladas de pólvora e uma máquina tipográfica para azeitar a luta independentista, auxílio considerável sabendo-se que o Haiti havia recém saído de uma sangrenta e ruinosa conflagração anticolonialista.

Note-se que este patrocínio, essencial para que a Venezuela se tornasse o primeiro país independente da América Espanhola em 1821, tinha contrapartida: a condição de que a escravidão fosse abolida nas terras emancipadas por Bolívar. Porém, a solicitação foi atendida somente décadas após a independência. Basta assinalar que nos países diretamente emancipados por Bolívar a proscrição da escravatura foi postergada ao máximo: acontece na Colômbia em 1851; no Equador, em 1852; e na Venezuela, apenas em 1854, ou seja, mais de três décadas após a independência.

Este debate ficaria incompleto omitindo-se que além da omissão de Bolívar quanto à escravatura, houve manifesta ingratidão contra o Haiti. A despeito do crucial apoio recebido dos haitianos, Bolívar jamais reconheceu a independência do país. Pior: em 1826, quando presidiu o Congresso do Panamá, reunindo as repúblicas americanas, recusou-se, a título de agradar os EUA, país ainda escravocrata, a convidar o Haiti para participar do encontro.

Certo é que todas estas atitudes são coerentes com um dado básico: o de que El Libertador era, no final das contas, membro da elite latifundista e escravocrata, mais preocupada a criar um novo Estado para si do que atender os oprimidos da época. O que também não admitiria justapor à imagem de El libertador adereços que não lhe competem.

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