A estética da barbárie

OPINIÃO - Gaudêncio Torquato

Data 13/02/2019
Horário 05:02

No chiste atualizado, o venezuelano chega perto de Deus e indaga: “por que o Senhor tem sido tão injusto com a humanidade? O subsolo do nosso país contém uma das maiores reservas do mundo em petróleo. Temos um herói que dá brilho à nossa história, o timoneiro Simon Bolívar, hoje mera estampa atrás da cadeira de Nicolas Maduro. Padecemos grandes necessidades: a fome, a miséria, a emigração de 3 milhões de pessoas, uma inflação de 2,5 milhões por cento ao ano”.

Deus disse: “tenho procurado ser justo. Vejam o Japão. É uma tripinha de terra com tufões, mas um gigante tecnológico. Olhe os Estados Unidos, a maior potência mundial, porém atormentada por ciclones que devastam regiões. E o frio que, este ano, em algumas regiões chegou a menos 50º C., matando gente? Passeie pelos encantos e da Índia e contemple as belas paisagens africanas, mas fuja da miséria daquelas paragens. Há nessas regiões muita pobreza”.

“Já viu algo mais lindo que os fiordes da Noruega? Veja o gelo que joguei lá. Botei muito petróleo no subsolo da Arábia Saudita e do Kuwait. Sabe por quê? Para compensar a tristeza de viver sob costumes quase desumanos”. O venezuelano se deu por vencido quando Deus arrematou: “e o Brasil, com seu imenso território, sol o ano inteiro, costa monumental banhada pelo Atlântico, terras férteis, sem terremotos, ciclones e guerras?”. A pergunta veio na bucha: “e por que tanta condescendência?”. Deus foi taxativo: “vejam o povinho que coloquei lá”.

Pois é, a brincadeira é conhecida, mas o brasileiro, ao viajar, não é um “canibal” que carrega tudo que vê, roubando até “o assento salva-vidas do avião”, conforme disse à Veja o ministro da Educação, o colombiano Ricardo Vélez Rodriguez. Se ele, porém, falar da incúria, do desleixo, da irresponsabilidade dos gestores públicos, acertaria na mosca. Por que o Rio de Janeiro vive um “estado de crise”? Por causa do desastre ambiental provocado pelas chuvas. Sexta pela manhã, um incêndio no Centro de Treinamento do Flamengo matou dez pessoas. Ora, o caos que vive o mais lindo cartão postal do Brasil tem como origem a incúria dos governantes. Onde está o planejamento urbano? O que se faz para prevenir os impactos de enchentes nesse Estado onde a natureza faz questão de deixar sua marca? Não é sabido, por exemplo, que no ciclo de chuvas, a região serrana do Estado registra catástrofes?

O que se dizer da tragédia de Mariana e a mais recente, a de Brumadinho, em Minas Gerais, um Estado rico em minérios, cheio de montanhas? A ganância, a ambição, o ataque feroz à natureza, perpetrado por conglomerados, são os responsáveis pela devastação e ocupação dos cemitérios. Se não há por nossas plagas terremotos, maremotos, há fenômenos tão devastadores quanto aqueles, produzidos pela decisão humana. Minas e Rio de Janeiro estampam a estética da barbárie.

As normas de boa conduta são jogadas na cesta do lixo. Temos boas leis, um conjunto de disposições para proteger o meio ambiente. São desprezadas. Quando as catástrofes ocorrem, uns jogam a culpa em outros. Laudos são “calibrados” para ajudar grupos. Pressões políticas orientam decisões que driblam o roteiro técnico. A grandeza de uma Nação não é apenas a soma de suas riquezas materiais, o produto nacional bruto. É o conjunto de seus valores, o sentimento de pátria, a fé e a crença do povo, o sentido de família, o culto às tradições e aos costumes, o respeito aos velhos, o amor às crianças, o respeito às leis, a visão de liberdade, a chama cívica que faz correr nas veias dos cidadãos o orgulho pela terra onde nasceram.

A anulação desse escopo espiritual faz das Nações uma terra selvagem. No afã de alcançar resultados, grandes lucros, despreza-se a força da natureza, a maior do universo. Os homens até conseguem, com obras monumentais de engenharia, driblar as forças naturais. Sua força tecnológica cresce a olhos vistos. Estão aí os diques, os túneis debaixo dos rios e dos mares, ícones da grandeza criativa do homem. Mas os furacões e terremotos que devastam espaços, não fazendo concessões aos mais avançados bastiões da tecnologia, provam que a natureza não pode ser ludibriada.

O povo, dizia Lincoln, não pode ser enganado em sua totalidade durante todo tempo. Por isso o povo, mesmo o mais sofrido, aquele do qual se tiram as energias pelas doenças, pelas sequelas, mazelas e omissão dos governantes, começa a usar a sua arma: a capacidade de tirar os dirigentes, a força para escolher seu próprio caminho.

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