“Sinto que eu não seria feliz caso deixasse a vida de padre”

Líder da Paróquia São Pedro, na Vila Flores, em Prudente, Jean-Luc Luki Musulu nasceu e cresceu na República Democrática do Congo

- ANDRÉ ESTEVES

Data 20/10/2018
Horário 09:53
José Reis - Pároco Jean-Luc: "Minha gratidão por esta paróquia e toda a comunidade"
José Reis - Pároco Jean-Luc: "Minha gratidão por esta paróquia e toda a comunidade"

O termo “apóstolo” significa “alguém que foi enviado”. O pároco Jean-Luc Luki Musulu, 36 anos, não só carrega os nomes de dois dos 12 discípulos de Cristo – Jean-Luc, em português, é a combinação de João e Lucas –, como também se considera um homem encarregado da missão de disseminar o Evangelho, a exemplo dos célebres seguidores de Jesus. Poucas palavras trocadas com o missionário são suficientes para o ouvinte se surpreender com seu português fluente, resultado de um curso de idioma com duração de dois meses e uma adaptação rápida a um país onde até então jamais cogitara estar. De origem africana, o religioso nasceu e cresceu na República Democrática do Congo, onde se interessou pelo trabalho realizado pela Congregação Religiosos de São Vicente de Paulo, uma organização presente em sete países e que tem por objetivo a evangelização das famílias dos meios populares a partir de obras essencialmente missionárias.

O envolvimento com a entidade despertou nele o desejo de seguir e servir a Cristo e não tardou para que Jean-Luc entrasse para o postolatado e, mais tarde, ingressasse no noviciado. Com um curso de Filosofia no currículo, ele professou seu primeiro voto em 2007, quando começou seu ano apostólico e se dedicou a obras dentro de sua comunidade, trabalhando como ecônomo na casa de formação da Província do Congo e como especialista em informática no centro comunitário. No fim daquele ano, iniciou a graduação em Teologia e, em 2010, celebrou o voto perpétuo. Na ocasião, a congregação solicitou que fizesse o mestrado em Direito Canônico, o qual concluiu na universidade católica do seu país.

Em 2012, foi ordenado diácono e, em 2013, padre, ato seguido pelo início de sua experiência missionária no Brasil, aonde chegou no dia 30 de dezembro de 2014. O pároco fez passagens por Marília (SP); Brasília (DF), a fim de fazer o curso de português, uma vez que só falava o francês; e Brasilândia (SP), onde foi nomeado vigário da Paróquia Imaculado Coração de Maria e atuou por dois anos. No dia 7 de fevereiro de 2018, aceitou o convite para assumir a Paróquia São Pedro, na Vila Flores, em Presidente Prudente. Em entrevista concedida a O Imparcial, Jean-Luc compartilha a sua trajetória e um pouco dos seus cinco anos de ordenação sacerdotal, celebrados no dia 22 de setembro.

O Imparcial: O senhor sempre teve o interesse de seguir a vida sacerdotal?

Jean-Luc: A minha vocação nasceu a partir da dor da minha avó. Ela sofreu uma espécie de lepra e meus pais não queriam que eu ficasse com ela, mas insisti em permanecer ao seu lado e cuidei dela até que ficasse curada. Mais tarde, fomos visitar um padre jesuíta e minha avó contou tudo que lhe aconteceu durante o tempo em que ficou doente e recebeu meus cuidados. Na ocasião, ele perguntou o que eu gostaria de fazer no futuro e respondi que gostaria de ser como ele. Quando estava terminando o ensino médio, aquele mesmo padre voltou novamente para celebrar uma missa em nossa cidade e fomos reencontrá-lo. Ele perguntou para a minha avó se ela me deixaria livre para fazer o que eu gostaria e ela se mostrou favorável. Com seu consentimento, comecei a minha experiência no seminário menor e, como o desejo foi crescendo cada vez mais, passei para o seminário maior. Sentia que Deus estava me chamando para ser padre diocesano e, por isso, fui em frente e me tornei missionário religioso de São Vicente de Paulo.

Já tinha imaginado estar no Brasil antes de desembarcar aqui?

Eu nunca sonhei que poderia vir ao Brasil, foi Deus que me trouxe. Quando o superior geral da nossa congregação foi fazer a visita canônica ao meu país, ele conversou comigo e propôs que eu trabalhasse na casa de formação da França. No entanto, como o Brasil estava precisando mais, ele mudou de ideia e perguntou se eu poderia vir ajudar a entidade provincial daqui. Somos missionários e nossa vida é a obediência, portanto, aceitei o convite.

Como foi a recepção dos prudentinos?

A Paróquia São Pedro me acolheu muito bem. No dia da minha posse, a igreja estava lotada e as boas-vindas me animaram muito. A comunidade me aceitou com todos os meus defeitos e dificuldades com a língua, mas, no final, a gente se entende. Amo muito a nossa paróquia e estou me dedicando para trabalhar aqui e promover a sua unidade, porque esta é a nossa missão. O direito canônico diz que a paróquia é uma porção de terra que o bispo confia ao pároco, cujo dever é trabalhar junto à comunidade. E quando falamos em comunidade, nos referimos a cada membro da igreja, seja criança, idoso ou enfermo. Todo mundo faz parte da comunidade e nosso trabalho é uni-la e se dedicar a ela. Como cristãos católicos, nosso lugar é a igreja. É nela onde vamos encontrar Jesus, que nos fala que “quem come a Minha carne e bebe o Meu sangue permanece em Mim e eu nele” – o que significa que Cristo existe e atua quando lhe damos abertura, quando o amamos e quando o ajudamos a servir. A união faz a força.

Quais foram as principais diferenças culturais que o senhor sentiu ao trocar de país?

Eu saí do meu país sem saber falar “bom dia” em português. De modo geral, as diferenças culturais são grandes, mas poucas também. Grandes, porque o Brasil abrange uma mistura de culturas. Não tem uma raça pura. Há africanos, asiáticos, europeus. E poucas, pois há semelhanças nos modos de vivência. Embora a maneira de cozinhar seja diferente, os alimentos são os mesmos. Assim como no Brasil, também comemos arroz, feijão, carnes e peixes. Além disso, os brasileiros são muito acolhedores, recebem os estrangeiros e dão atenção a eles, o que também ocorre no Congo. Mas é claro que cada país tem os seus costumes e maneiras de se expressar, falar, dançar e transmitir valores. Não vou entrar no mérito da política, porque as mesmas dificuldades que temos aqui, encontramos lá. O Brasil, contudo,  é um país muito bom. Quanto ao idioma, a minha adaptação foi acelerada. Eu fiz dois meses de curso e, quando encerrei a parte teórica, fiquei uma ou duas semanas junto com uma família brasileira para praticar a oralidade.

O senhor tem saudades do seu país?

Sinto falta, isso é normal, pois é o lugar onde nasci. Todos os meus pilares estão lá: pai, mãe, irmãos. Entretanto, Jesus falou que quem deixa pai, mãe e irmãos por sua causa recebe mais. Eu cheguei aqui, tenho uma nova casa e outros irmãos – a comunidade. Deixei os laços de sangue e encontrei os laços do coração. Contudo, sinto sempre essa falta. Às vezes, a gente quer ver mamãe, dar um abraço, falar a nossa língua, mas não posso.

Além da família, de que sente mais falta?

Posso citar a comida, embora eu faça as receitas por aqui. No Congo, comemos muito a polenta, que lá se chama fufu. É esta mistura do fubá, mas preparada de forma diferente e que acompanha carne e peixe. Particularmente, não sou propenso a festas, mas sinto falta das comemorações de aniversários, que envolvem toda uma organização da comunidade. O dia começa com a missa, seguida por uma animação muito forte com danças, comidas e cantos. É um rito que faz falta. No entanto, a gente pega o ritmo daqui.

Faz planos de voltar ao seu país?

Eu sou missionário. Se o superior geral determinar meu retorno ao Congo, eu vou, assim como para o Canadá. Um missionário não pode falar que vai ficar definitivamente em um único lugar. Somos soldados de um exército e devemos estar sempre prontos para os locais que precisam de nós. Então, se um dia me falarem para voltar ao meu país, eu retornarei. Minha última viagem foi no ano passado e, enquanto permaneço aqui, converso com a minha família pelo Whatsapp, Facebook ou Skype, porque é muito difícil fazer ligação normal para lá.

E quais são os seus planos para a vida pessoal e sacerdotal?

Sempre sonhei em fazer o meu doutorado em direito canônico. Caso algum dia – porque tudo é negociável –, a congregação aceitar que eu volte a estudar, será uma coisa muito legal para mim. Já para a paróquia, os desejos são muitos. O primeiro plano é fazer a sua unificação, pois não é fácil um jovem assumir uma paróquia grande. Aqui são seis capelas mais uma matriz e não tenho muita experiência. É a primeira vez que sou pároco. Depois de almejar esta unidade, o objetivo é atuar muito bem sobre as pastorais que existem. Se não me engano, há cerca de 30. A minha ideia é também unificá-las para que cada uma se sinta dentro da casa. Por exemplo, a pastoral familiar existe, mas carece de um trabalho de reativação maior. Desde a minha chegada, já retomamos algumas missas voltadas a públicos específicos e as pessoas estão entusiasmadas com isso.

O senhor está satisfeito com a vida que escolheu para si?

Como costumamos falar em francês, “quem quer, pode”. Se você quer muito uma coisa, precisa desenvolvê-la. Sinto que eu não seria feliz caso deixasse a vida de padre. É uma missão que Jesus me confiou e que devo cumprir com simplicidade, dedicação e amor. Para muitos, a autorrealização significa se casar, ter filhos e formar uma família, enquanto, para outros, é buscar bens materiais, o que não é proibido. Eu também posso tê-los, mas de acordo com os meus votos. Não é porque professei o voto da pobreza que viverei em condições precárias. Se preciso de uma camisa, falo com o meu ecônomo e solicito uma quantia para comprar uma peça, mas isso não quer dizer que vou lotar a minha mala de roupas. Porém, a minha maior realização pessoal é aconselhar e orientar as famílias que passam por aqui.

Para encerrar, que mensagem o senhor deixa aos fiéis?

Quero agradecer ao povo brasileiro por ter aceitado um estrangeiro atuar aqui como missionário e ao superior provincial do país, que buscou a ajuda do Congo. Também demonstro a minha gratidão por esta paróquia e toda a comunidade – esse povo de Deus que quer ser reanimado e se realizar no caminho da santidade e na busca por Jesus. Muito obrigado pela paciência diante de todas as minhas dificuldades com a língua. Quero continuar cuidando de vocês nessa missão.

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