“Por baixo da batina do padre, existe uma pessoa comum”

- ANDRÉ ESTEVES

Data 09/02/2019
Horário 09:55
José Reis - Líder do Santuário Santa Teresinha, padre Sandro diz que experiência em CDP foi humanizante
José Reis - Líder do Santuário Santa Teresinha, padre Sandro diz que experiência em CDP foi humanizante

Quem conhece o jeito tímido e sereno do padre Sandro Rogério dos Santos pode não imaginar que ele já participou diretamente das negociações para o fim de três rebeliões em uma unidade prisional da região de Presidente Prudente. Enquanto atuou como pároco no município de Caiuá, o religioso acompanhou de perto a rotina dos detentos do CDP (Centro de Detenção Provisória) “Tácio Aparecido Santana”, ajudou a tranquilizá-los durante uma greve de fome de três dias e até mesmo a intervir em situações nas quais sentia que o município ou o Estado se mostrava omisso. Desde sua designação para assumir o Santuário de Santa Teresinha, em Prudente, seu trabalho não demanda o contato com a população carcerária, no entanto, é desta experiência que tira os maiores aprendizados da vida sacerdotal. Contrariando as críticas que recebeu da própria comunidade ao dedicar parte do seu tempo aos presos, Sandro nunca deixou de acreditar que é possível descobrir bons semeados até mesmo nos solos mais pedregosos.

Nascido em Tarabai no ano de 1976, o menino que viria a se tornar sacerdote nem sempre teve presença assídua nas missas, uma vez que morava na zona rural e o deslocamento até a capela mais próxima se mostrava por vezes desfavorável. Nas oportunidades em que comparecia, contudo, o interesse do garoto pelas celebrações era evidente, apesar de nunca ter despertado de forma tangível. Durante a adolescência, já residindo na zona urbana, o jovem “caiu de paraquedas” em um curso de catequese, que reacendeu nele o desejo até então adormecido de “fazer parte da obra de Deus”. Na época, ele deixou seu emprego em uma fábrica de móveis e passou a trabalhar na secretaria da paróquia, envolvimento que o levou a ingressar, aos 19 anos, no seminário. Prestes a completar 15 anos de ordenação, o pároco concede uma entrevista exclusiva a O Imparcial, na qual faz um retrospecto sobre a sua trajetória eclesiástica e se aprofunda em questões íntimas e pessoais.

O Imparcial: Após quase 15 anos dedicados ao sacerdócio, você se imagina sendo outra coisa senão padre?

Sandro: Não penso nisso, até porque ser padre não me limita. Mas acho que em uma realidade alternativa eu seria jornalista. Tanto é que, desde o seminário, sempre estive envolvido de alguma forma com a comunicação e, atualmente, escrevo uma coluna da diocese e artigos de opinião para o jornal. Acredito que o meu gosto por isso vem do rádio. Cheguei a trabalhar muito tempo nesse tipo de veículo, embora eu não tenha formação específica. Não me considero um bom cronista, porque sinto que a minha fala é mais fácil do que a escrita, então, o rádio me proporcionava isso. Como minha família tem origem no nordeste, herdei a linguagem e o pensamento rápidos, que ficam bem nesse veículo. O interesse por isso me ajudou de alguma forma, pois fui responsável pela comunicação da diocese durante muito tempo – uma espécie de porta-voz. Hoje, há congregações da igreja que possuem ramos especificamente voltados para a comunicação, a exemplo dos paulinos e salesianos, mas eu nunca me vi fora do que faço. Talvez eu fosse um pouco medroso.

 

Como começou o seu envolvimento com a comunidade do Jardim Maracanã?

Assim que eu saí do seminário, fui morar em Primavera, distrito de Rosana. Em seguida, passei a ser padre em Caiuá e, posteriormente, trabalhei quase seis anos em Piquerobi. Em 2011, cheguei a ficar seis meses sem paróquia, até que, em julho, a diocese criou o Santuário de Santa Teresinha e me designou para cá.

Enquanto sacerdote, quais foram os seus maiores aprendizados?

O que mais me marcou até hoje foi o período em que morei em Caiuá e visitava o CDP. É a experiência mais humanizante e, sem perceber, profética que já vivi, porque nem todas as pessoas aprovavam. A sociedade acha que a população carcerária é lixo e o lixo tem que ficar no lixão, até que um filho, um conhecido, um irmão, um amigo ou um esposo vá preso, então, a coisa talvez comece a mudar de figura. O CDP de Caiuá foi inaugurado em 2005 e, desde o início, sempre estive muito presente. Havia dias em que eu chegava às 8h e saía às 20h. Participei da negociação de três grandes rebeliões. Como eu tinha um bom acesso à direção e aos presos, eles me chamavam. Lá, vivi muitos dramas e situações e entendi como funciona o sistema. Na cidade, as pessoas diziam que o padre cuidava mais dos maus do que dos bons. A princípio, eu não queria isso, porque não é o meu perfil e nem me distingo por um trabalho social, mas percebi que também poderia encontrar ali terrenos bons – e havia. Sendo assim, eu gastava tempo com os funcionários e os detentos. Eventualmente, as famílias me visitavam ou enviavam cartas. Como a gente tinha uma rádio comunitária, eu punha no ar tudo que era feito na igreja. Uma vez, me escreveram uma carta dizendo que, na hora da missa, eles ouviam o rádio como se estivessem dentro da igreja conosco. A greve de fome de três dias foi ainda mais tensa, porque um CDP é diferente de uma penitenciária, onde você pode reunir todo mundo em um pátio. Ali, são oito raios e cada um tem oito celas, então, eu precisava percorrer um por um para tentar negociar e ao mesmo tempo mostrar que eu estava sendo verdadeiro. Aquele dia foi difícil, mas conseguimos.

Por que o seu interesse no contato com a população carcerária?

Todo padre diocesano tem que cuidar de determinado espaço. No caso do Santuário de Santa Teresinha, o território é o Jardim Maracanã, mas não há uma cerca delimitando esse espaço. É natural que as pessoas transitem e venham para cá. Com isso, eu acolho os que já são daqui e busco atender as necessidades dos que não são. Em Caiuá, surgiu uma unidade prisional no território da paróquia. Das duas, uma: eu poderia fazer de conta que não existia ou tentar ajudar. Na época, o Estado fez uma coisa muito ruim, que foi esparramar sentenciados por todo o território paulista, inclusive em CDPs, que não são os lugares apropriados, pois não contam com escolas e nem locais de trabalho. Em Caiuá, eram 1,1 mil presos sendo atendidos por uma única enfermeira, cujo expediente era das 7h às 14h. Com o apoio do bispo anterior, conseguimos fazer contato com a SAP [Secretaria da Administração Penitenciária] e transferir mais de 90 presos, ajudando a desafogar o local. Mais tarde, começaram os atos de violência organizada, o acesso se tornou mais arriscado, houve um enrijecimento das regras e ficou mais difícil trabalharmos. Depois que saí, perdi o contato, porque não estou mais em uma paróquia com esse tipo de demanda. Este ano, a nossa diocese tem estudado o que fazer em relação aos locais onde há população carcerária, porque é difícil achar leigos para trabalhar nisso. Eu tentei contribuir da minha forma. Hoje durmo em paz.

Houve histórias que lhe marcaram?

Sim. Certa vez, o diretor do CDP me ligou para dizer que havia um preso querendo se enrolar no colchão e por fogo no próprio corpo. O detento estava desesperado porque era da capital e fazia tempo que a esposa não dava sinal de vida. Achava que ela tinha arrumado outro e, por isso, sua vida havia perdido o sentido. Fui lá, conversei com ele, pedi para que me passasse o telefone da mulher e aguardasse um tempo até eu conseguir alguma informação. A própria assistência social poderia fazer isso, mas tudo era muito precário no início. Demorou um pouco, porém, consegui falar com a esposa, que riu e disse que amava o marido, mas que o dinheiro estava curto até mesmo para comer, imagine para visitá-lo. Quando voltei, o preso esbugalhou os olhos, chorou um monte e desistiu do suicídio. Em outra ocasião, recebi a carta de uma senhora que tinha o filho preso e me convenceu a visitá-la. Ela reconhecia o erro do filho, sabia que não estava certo, mas que acreditava em sua mudança, porque sabia de onde ele viera – de dentro dela. São coisas pequenas, mas que não têm como apagar. Eu não ia ao CDP para ser juiz e defender o erro, mas defender a pessoa que errou.

Quais são os principais “pesos” de carregar a batina?

Eu não conheço vida sem pesos. Nossas vidas fazem sentido se houver amor. O amor, por sua vez, tem sentido se envolver esse aspecto de sofrimento. Um sofrimento sem amor até existe, mas um sofrimento com amor é que verdadeiramente faz sentido. Um pai e uma mãe, por exemplo, sofrem desde o momento em que planejam ter um filho: estão preocupados se vem com saúde, se vai se formar, se terá um emprego. A vida, portanto, precisa ter sentido antes para que o sofrimento caiba nela. Eu me vejo como uma pessoa feliz e realizada, embora meu semblante não expresse isso em alguns momentos. Há muitas coisas possíveis de serem feitas que não tenho condições de resolver, mas, certamente, me dedico a todas que estão ao meu alcance, ainda que as pessoas façam juízos equivocados a respeito, como no caso do meu trabalho com os presos em Caiuá. O meu principal lema é que o papel do ministro religioso é ajudar as pessoas a sofrerem pelas causas corretas e não pelas erradas.

Um padre se sente solitário?

Acredito que todo mundo tem essa dimensão de solidão, mas é preciso saber distingui-la. Acho que a pior solidão é a de você morar com outras pessoas e se sentir sozinho. Isso acontece com frequência. Costumo dizer que algumas famílias vivem como se fossem postes de luz: seus membros estão ali, tem um fio que os ligam, mas não convivem e nem iluminam uns aos outros. Eu moro sozinho, mas não me sinto solitário. Há momentos de solidão, quem nunca teve? Entretanto, estes são necessários também, sobretudo para reflexão. Toda reflexão que não parte de um silêncio é superficial. Hoje, vivemos em uma sociedade com necessidade de se sentir exposta. As pessoas não se sentem em paz consigo mesmas e não se sentem confortáveis em ficarem quietas em suas casas. Eu gosto muito de ficar quietinho, dedico esses momentos para orar, ler, escrever e me instruir. Em contrapartida, há pessoas em busca de um paraíso inexistente – um lugar que reproduza a experiência das redes sociais, onde os usuários estão tristes, mas sentem que precisam mostrar que estão felizes. Parece que elas não têm consciência de que estão esvaziadas e se enchendo de vazio.

Além dos compromissos com a igreja, o senhor também é articulista. Qual a importância de ter um espaço para expor suas ideias? Sendo um padre, é preciso pensar duas vezes antes de se posicionar em relação a determinados temas?

Escrever tem um peso e é exigente, mas é algo que eu carregava como meta desde a faculdade. Por meio dos meus artigos, tento expressar o que a igreja pensa, filtrando pelas minhas leituras, visão de mundo e experiência de vida. Isso me exige um pouco, pois há muitos assuntos para serem explorados, mas nem sempre consigo tempo para pesquisar e me aprofundar neles. E frequentemente aparecem temas muito delicados. Um dos problemas que encontro é que, sendo padre, muitos querem que eu faça uma afirmação universal para seus problemas e isso não é correto. Um exemplo interessante é quando falo que Deus ama o assassino da mesma forma que ama o assassinado, porque Deus é amor e não podia ser diferente. Isso gera um incômodo em certas pessoas, que respondem que eu só digo isso porque não aconteceu com o meu irmão, o meu pai ou a minha mãe. Entendo o que a pessoa defende, mas a medida das coisas que faço não é a minha mãe, é o Cristo da minha fé. Se a minha mãe fosse a medida, eu realmente estaria mais para a vingança e para o tapa do que para a misericórdia. Quando me posiciono, não posso forçar ninguém a pensar como eu penso, mas sugerir que cresçamos juntos. Além disso, sempre tomo o cuidado de ser fiel à igreja e, sobretudo, ao Evangelho e comunicar isso de forma que as pessoas entendam que elas e eu estamos no mesmo patamar. Não posso dizer que deixo de ser padre quando saio da paróquia. Se me virem frequentando uma academia ou tomando uma cerveja, continuo sendo o padre, então, se a minha pregação disser que o indivíduo não pode ir à academia ou tomar uma cerveja, serei um tremendo hipócrita. Embora haja pessoas que endeusem a figura do padre e outras que demonizem, não somos anjos nem demônios. Por baixo da batina existe uma pessoa comum.

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