“Eu só vou parar quando eu não conseguir falar mais”

Baiano, prudentino de alma, mas italiano pela característica de falar alto e expressivamente, ele está no rádio desde a década de 60

- THIAGO MORELLO

Data 11/08/2018
Horário 08:32
Thiago Morello - Conhecido por seus bordões, Laerte Silva chega aos 55 anos de carreira
Thiago Morello - Conhecido por seus bordões, Laerte Silva chega aos 55 anos de carreira

“Aqui é a banana que come o macaco”.  “Lá onde a coruja dorme e o vento encosta o cisco”. “Vai tomar café de canequinha”. Para quem ouve rádio, não é preciso identificar o autor de tais bordões, porque as frases por si só já o remetem. Aliás, é até impossível lê-las sem tentar imitar a voz. Mas elas possuem dono. Baiano, prudentino de alma, mas italiano pela característica de falar alto e expressivamente, Laerte Silva está no rádio desde a década de 60, quando sua primeira experiência radiofônica era apenas dar a hora certa.

Ao longo dos seus 55 anos de carreira, o radialista também se consagrou como investigador de polícia e repórter policial, função que desempenha até hoje. Mas engana-se quem pensa que a vida profissional de Laerte resumisse aos boletins policiais ou ao entretenimento Sertanejão dos domingos de manhã na Rádio Comercial. Aos 70 anos de idade, ele ainda traz em sua bagagem as formações em Educação Física; Direito; Educação Artística; Artes Industriais; Filosofia, Ciências e Letras; e em Jornalismo, além do teatro, coral, política (vereador) e os ensinamentos como professor. Na comunicação, ainda há espaço para experiência na TV, jornal impresso, assessoria de imprensa e, claro, o rádio, sua paixão maior.

Hoje, casado, pai de dois filhos e aposentado duas vezes, mas sem pretensão ou pensamento de encerrar sua carreira tão cedo, o radialista deu uma entrevista exclusiva a O Imparcial, no qual contou um pouco de sua trajetória profissional, suas histórias marcantes, e o que pensa para o futuro, além de revelar um pouco do Laerte fora do rádio e da vida policial. Confira a seguir toda a conversa na integra.

O Imparcial: Como começou a sua carreira no rádio e a forma híbrida de trabalhar como investigador de polícia e repórter policial?

Laerte Silva: Eu comecei a trabalhar com 15 anos de idade, fazendo experiência com vários nomes do rádio. Nessa época eu já atuava como locutor, mesmo que fosse apenas para falar a hora certa. E nos anos 80, quando passei no concurso para investigador policial, eu já estava no rádio, então pensei em atrelar os dois, atuando como repórter policial. Me identifiquei e continuei. Aí comecei a entrevistar bandido, ir atrás dos acontecimentos... E quando eu tô dando minha notícia, eu estou me importando com o meu ouvinte, mas faço com carinho, de uma forma que coloco meu coração na voz. E eu vou na fonte buscar a reportagem, não dou notícia que escutei no bar. Eu vou até a delegacia. Tem BO (boletim de ocorrência)? Então eu faço. Depois disso ainda trabalhei com TV e impresso, mas o rádio é minha paixão. É nele que estou até hoje! Ser investigador e repórter policial era bom, porque eu mesmo investigava o crime e noticiava sobre ele. Eu tinha todas as informações.

E por que o rádio?

O rádio é prestação de serviço. Na roça, o cara está trabalhando e ele tinha aquele radião de pilha, estava trabalhando e ouvindo. Não tinha TV, não tinha nada. Quando ia fazer a compra na venda, a primeira coisa que a mulher mandava o peão trazer era a pilha pra abastecer o aparelho. Você ia num barco pescar e levava o rádio. Então, ele é uma companhia. O locutor falando é um amigo seu que está ali com você, com a dona de casa, com todo mundo. O rádio é o pioneiro, é autêntico e sempre será o mais instantâneo. Minha vocação, tanto para polícia quanto para a reportagem, não veio de influência da família. Eu sempre fiz por amor. Vivo pelo rádio.

Antes de entrar no ar, de que forma você se prepara momentos antes de dar as notícias?

Não existe nenhum preparo específico. Mas eu acordo todo dia bem cedo, às 4h. A primeira coisa que faço quando coloco os pés fora da cama é dar uma tossida e falar: “alô, alô”, bem alto. Tem voz? Pronto. Vou pro pau do jeito que estou. É tudo o que preciso. Tomo meu café, pesquiso na internet e faço a ronda com as polícias locais para saber o que tem de novo, a fim de saber se aconteceu algo ao longo da madrugada. Às vezes estava dormindo e teve uma apreensão de droga em Presidente Epitácio, por exemplo. Eu preciso me atualizar. E assim faço diariamente. São os momentos que antecedem as notícias.

Além da voz marcante, alta e expressiva, você também é conhecido por dizer alguns bordões durante a fala das notícias, como isso surgiu?

São frases que foram criadas no momento da coisa ali. O tomar café de canequinha, por exemplo, é porque naquela época do cadeião da [Rua Dr.] Gurgel, os presos tomavam na canequinha mesmo. Agora imagina um corredorzão cheio de grade, escuro e no final um vão, onde tem uma fresta de vento e a coruja dorme. Daí vem o “lá onde a coruja dorme e o vento encosta o cisco”. “Onde o filho chora e a mãe não vê”, porque lá eles reclamam, gritam, se dizem inocentes, chamam a mãe, mas ela não tem como ver mesmo. Já na TV, o mais famoso é o “aqui é o contrário, é a banana que come o macaco”. O sentido é a força da coisa mesmo, na intenção de intimidar. Não adianta vir reclamar, fez vai para o pau e vai preso. É como a caça atrás do caçador.

E por falar nessa intimidação com o preso, como era o seu relacionamento com eles?

Tinha todos os tipos de pessoas. Eu me lembro de uma história, de um policial carcereiro, acho que chamava Dainezi. Ele era conhecido por ser amigo dos presos. Mas teve um dia que estourou uma rebelião, e os presos meteram fogo no colchão, mas o Dainezi não teve tempo de sair de lá e correr. Eles o pegaram e o jogaram nas chamas, como Joana d’Arc. Isso é para mostrar a frieza do bandido, frieza que muitos tinham. Eles eram cruéis. E naquele momento a gente não podia entrar. Mas também, a capacidade era para 70 e tinha 180 lá. Época das rebeliões, em 2006. Mas uma característica legal de falar é que quando tinha rebelião, eles faziam um bate-panela. Pegavam as panelas de alumínio e batiam uma contra as outras, nas grades, enfim, faziam isso para deixar o pessoal louco e, assim, atender aos pedidos deles. Imagina o dia inteiro escutando isso. Mas quando dava 11h e eu entrava no ar, o barulho acabava. Dei a notícia, me despeço, eles voltavam com o barulho. “Pá, pá, pá!”. Eles queriam saber o que eu ia falar, se tinha novidade sobre a rebelião, se o Estado ia atender as reivindicações. Aquele tempo tinha rádio dentro da cadeia, então eles se transformavam em ouvintes. É um lugar que teve história. Aliás, esse cadeião, depois que ele saiu da Gurgel, foi uma tranquilidade até para os próprios vizinhos, que ficaram menos preocupados.

Na região, nós vivemos épocas difíceis e acontecimentos marcantes, como as próprias rebeliões e a morte do juiz José Antonio Machado Dias (Machadinho), por exemplo. Trabalhar em duas profissões que se envolveram muito nisso existia perigo?

Sim, perigo! Troca de tiros, principalmente. Graças a Deus nunca matei ninguém, nunca acertei ninguém e ninguém me acertou até hoje. Mas o perigo existia, tipo na hora de prender o bandido, por exemplo, porque existe a hora certa. É de manhã. De noite e madrugada ele está com a mulher dele, se drogando, roubando... E antigamente não tinha isso de mandado de busca, o delegado falava: vai e prende, e a gente ia. Então amanhecia, e ali pelas 6h nós íamos buscar o cara. Perigo sempre teve. Polícia e jornalista ao mesmo tempo, é lógico que ia criar inimigos. Aliás, tem diferença do policial repórter e o repórter policial, porque o policial repórter não tem medo, ele conhece o meio e vai além dos limites para conseguir a informação. Medo é uma palavra que não existe. A gente estava acostumado com a rotina, que questionava quando isso não acontecia naquela época. Você vai se familiarizando com a coisa. Toda profissão tem que ter o seu profissional, então, quando entrei na polícia eu sabia do risco. Quando fui pra rua nunca mais larguei. Uma vez eu entrevistei um coronel, e ele me questionou se eu estava armado. Eu disse que não, em respeito a ele e porque estava como repórter e não policial. Ele olhou pra mim e disse: “Nunca ande desarmado. Um professor sempre esquece o seu aluno, mas o aluno não esquece o professor”. Eu prendi muita gente ao longo da minha vida policial e, às vezes, a gente esquece que o tempo passa, essa pessoa sai da prisão e pode vir atrás. O perigo existe até hoje.

Notícias policiais podem envolver perigo, mas também emoção. Qual história te vez dar um nó na garganta e segurar o choro?

Eu vi de tudo. Gente sem cabeça, sem braço, baleado. Vi acidente de trânsito. Vi atropelamento. Mas teve uma que me chocou e que me marca até hoje. No trevo de Martinópolis, quando não tinha modernidade ainda, uma família saiu de um sítio vizinho para levar um parente até a rodoviária da cidade. Eles saíram em uma Brasília, e foi praticamente a família toda, inclusive uma criancinha. Não sei como, se foi no momento de cruzar o trevo, o motor falhou, o carro empacou no meio da pista. Vinha um ônibus na hora, que encheu a lateral da Brasília, jogou ela longe e o carro pegou fogo. A família inteira morreu carbonizada. Eu fui até o local, e chegando lá dava pra ver só os torrões, tudo queimado. Vendo os corpos, eu fui questionando para o bombeiro e ele me contando: “esse era o pai, essa era a mãe...”. Mas teve um deles que me chamou a atenção, porque era pequeno demais. Ele me disse que era o corpo de uma criança, no entanto, estava com outra coisa anexa ao tronco, outro torrão maior grudado. Nisso eu perguntei para o bombeiro o que era aquilo, aí ele virou e me disse: “isso aí era o cachorrinho dele, que ele veio abraçado e dormindo durante a viagem”. Aquilo acabou comigo na hora, “quebrou minhas pernas”. Era melhor que eu não tivesse ido. Criança, e segurando o cachorrinho? Essa foi pesada.

Laerte, você acredita que naquela época o crime era maior, os acontecimentos eram mais marcantes, ou hoje o jornalismo está mais escasso?

Acontece que os veículos de comunicação, hoje, se interessam pelo “filezão”, a notícia forte. Antes tudo era notícia. Hoje não, o rádio e os demais canais filtram. Naquela época, qualquer briga de vizinho, roubo de galinha, já era notícia. Atualmente tem muita coisa que ninguém nem olha porque não tem importância nenhuma. A morte do [juiz] Machadinho foi um fato forte, por exemplo, foi algo relevante e teve os desdobramentos. Hoje a imprensa pega a notícia grande. Notícia comum ninguém fala, até porque não é de interesse do ouvinte. O que se torna algo comum não interessa mais para quem ouve.

O público que te ouve assiduamente sabe quem é o Laerte fora do rádio ou pensa que você é aquele cara que vive 24h pela polícia?

É gozado, porque tem pessoas que já me conhecem. Eu sou uma pessoa conhecida, porque a voz do radialista marca. Muitas vezes, a pessoa reconhece a entonação e já sabe distinguir quem sou eu. Quando chego num lugar e começo a falar, a pessoa já reconhece e pergunta, e fala que viu na TV. Associa. Qualquer lugar que você falar, a pessoa já sabe quem é o Laerte Silva. Mas tem ouvintes que acreditavam que eu fosse aquele policial truculento e de cara fechada. Mas não, eu sou sociável, tiro sarro e tiram sarro de mim, brinco com o ouvinte no programa Sertanejão. E eu também tenho minha vida fora do rádio. Participo de atividades sociais, sempre participei de arte, teatro e escola de samba, como a Malacos, do Tênis Clube. Eu sou do povão. Nem lembro que sou policial às vezes. Eu gosto de estar no meio das pessoas.  Eu sou uma pessoa popular, tenho humildade, ajudo as pessoas sempre que possível, com ação, visita a hospitais, com orientação religiosa e pedindo para Deus interceder. Hoje ainda canto no coral Moquite Okada, da Igreja Messiânica de Presidente Prudente, além de tocar violão e cantar.

E depois de toda essa carreira, você pensa em parar?

Sou aposentado duas vezes, mas eu só vou parar quando eu não conseguir falar mais. Quando Deus me tirar esse dom eu paro. O rádio é minha paixão, e enquanto eu tiver disponibilidade, força para isso, eu vou fazer. Estou soltando a voz? Então, vou trabalhar a vida inteira. Comecei com 15 anos e vou tocar o barco até o dia que Deus me der saúde. Me preparo, faço musculação, academia, caminhada... Me cuido para que eu possa estar nessa profissão sempre.

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