“As conquistas dos transexuais ainda são muito embrionárias”

- ANDRÉ ESTEVES

Data 07/07/2018
Horário 08:22
José Reis - Walleria iniciou transição de gênero aos 34 anos de idade
José Reis - Walleria iniciou transição de gênero aos 34 anos de idade

Embora tenha uma doença degenerativa nas retinas que provoca a perda gradual da visão, Walleria Suri Zafalon, 41 anos, nunca enxergou melhor a si mesma do que a partir dos 34 anos, quando decidiu ir a um brechó e trocar todas as suas roupas masculinas por femininas. A transição de gênero ocorreu tardiamente por medo da exclusão social, que já a atingia por conta da deficiência visual. No entanto, a recém-mulher exteriorizada já habitava dentro de si desde a infância. A decisão de mudar o nome e entrar para a fila do SUS (Sistema Único de Saúde) em busca da cirurgia de readequação sexual exigiu que a prudentina abrisse mão de amigos, familiares, moradia e até mesmo emprego e recomeçasse sua trajetória praticamente do zero, agora como um ser humano redescoberto e, como ela deixa claro em seu discurso, finalmente livre.

Aproveitando a Semana da Diversidade, realizada em Presidente Prudente, a reportagem esteve no Centro Cultural Matarazzo para conversar com a estudante, que relembra a resolução repentina de deixar sua antiga vida e adentrar em um caminho, por vezes, solitário, ainda que contasse com o apoio fundamental do pai. Além disso, descreve o processo transexualizador, permeado por anos de tratamento psicoterapêutico e hormonal, que lhe garantiram a oportunidade de se mostrar ao mundo sem ser privada por sua condição biológica. Acompanhe nas linhas a seguir:

O Imparcial: Walleria, embora tenha iniciado sua transição de gênero aos 34 anos, você sempre se identificou como mulher?

Walleria: Isso ficou claro para mim desde muito cedo. A partir do momento em que passei a entender a diferença entre meninos e meninas e homens e mulheres, por volta dos 4 ou 5 anos, já comecei a me perceber como uma pessoa do gênero feminino. Na época, eu pensava: “se o universo da menina é o que me atrai e me conforta, por que eu sou diferente delas? Por que eu tenho corpo de menino e esperam que eu me comporte como um?”.

A pressão social impediu que você reconhecesse o gênero feminino mais cedo?

Sim. Ao mesmo tempo em que me reconhecia como menina e entendia que, internamente, eu não era um menino apesar de ter o órgão sexual masculino e usar roupas masculinas, alguma coisa dentro de mim falava que isso estava errado, o que fez com que eu escondesse a minha verdadeira identidade por mais de 30 anos. Eu só fui reconhecê-la a partir dos meus 34 anos por conta do medo de tudo que eu iria sofrer.

E em que momento você percebeu que não poderia mais esconder o gênero com o qual se identificava?

Quando você tem uma condição transexual e esconde isso da sociedade, de alguma forma também precisa escondê-la de si mesmo. Ao carregar este segredo durante a sua vida, isso se torna uma carga muito pesada psicologicamente e emocionalmente. As coisas da minha vida não andavam profissionalmente e academicamente, eu tinha que viver à base de antidepressivos e minha vida não evoluía. Daí, chegou um momento em que eu não aguentava mais e explodiu. Pensava: “eu consigo lutar contra o mundo, mas não consigo mais lutar contra mim mesma”. A partir de então, decidi: “não importa o que acontecer, preciso ser eu mesma”.

Inicialmente, como foi o processo de se reconhecer como mulher?

Naquele momento, eu não morava em Prudente, pois me mudei para São Paulo para trabalhar e estudar. Na época, eu já tinha algumas roupas femininas e me vestia como mulher, mas em lugares muito escondidos ou dentro do meu quarto, onde me produzia para ver como eu ficava. No entanto, aquilo não era suficiente, já que, em algum momento, eu tinha que me desmontar e voltar a ser aquela pessoa que para mim era só um personagem. Quando eu resolvi me libertar de fato, foi uma coisa instantânea. Muitas pessoas tentam começar aos poucos, primeiro fura uma orelha, depois coloca um brinco e, mais tarde, faz uma sobrancelha. Como eu fiquei com isso guardado por tanto tempo, deixei a Walleria Suri sair de uma vez só: fui para um brechó, troquei todas as minhas roupas masculinas por femininas e, no dia seguinte, fui trabalhar vestida de mulher.

Como as pessoas que faziam parte do seu círculo social reagiram a esta mudança brusca?

A exclusão social que sempre temi, considerando que eu também convivia com uma perda de visão evolutiva que já me colocava em uma situação de exclusão, realmente aconteceu. O mundo desabou sobre a minha cabeça. Eu tinha um bom emprego, um bom salário e um bom cargo em São Paulo. Dentro de quatro meses, fui desligada do meu trabalho. Eu morava com um tio há 10 anos em um apartamento de uma área nobre e ele também pediu que eu deixasse o lugar. Muitos amigos de longa data se afastaram, logo eu me vi sem amizades, sem moradia e sem trabalho. Depois, algumas pessoas me procuraram e ofereceram ajuda, desde que eu revisse a minha condição. “Quem sabe você pode se vestir no final de semana para ir numa boate”, diziam. Elas queriam que eu fosse a transformista de final de semana, mas eu respondi: “Agora que sou uma mulher e tive a coragem de revelar, não vou voltar atrás. Agora é a Walleria que existe e ela vai ter que se virar no mundo para ter o seu espaço”. Graças a Deus, segui em frente, encontrei gente que me estendeu as mãos e, aos poucos, fui reconquistando o que tinha perdido. Depois, consegui uma recolocação no mercado e continuei um tempo em São Paulo, mas por conta da perda da visão, que foi se acentuando e chegou a um estado muito evoluído, resolvi voltar para Prudente e ficar junto à minha família.

E como a sua família recebe a Walleria Suri?

Minha família não acompanhou o processo visualmente, mas tinha conhecimento. Eu posso me considerar uma pessoa de sorte, porque, ao chegar aqui, meu pai me acolheu de uma forma incrível e inesperada. Ele disse: “Eu não compreendo o que está acontecendo e não tenho conhecimento para entender, mas eu te amo e te apoio. Conte comigo”. Em seguida, me abraçou e me chamou de minha filha. Desde então, nunca mais me tratou pelo gênero masculino.

Conte um pouco sobre o processo transexualizador ao qual foi submetida.

No momento em que voltei para Prudente, eu já estava com o processo em andamento, pois São Paulo é um dos quatro lugares no Brasil que oferecem o tratamento pelo SUS [Sistema Único de Saúde]. Eu não poderia abandonar algo que vinha fazendo desde 2011, porque eu estava com os processos de hormonização e psicoterapia em estágio avançado e já me preparava para as intervenções cirúrgicas. Sendo assim, continuei indo periodicamente para a capital e me beneficiei do tratamento fora de domicílio viabilizado pelo município, que oferece transporte e ajuda de custo para quem depende de serviço médico inexistente na cidade. Em geral, você tem um ano de psicoterapia e um ano de hormonização e depois é liberada para as intervenções cirúrgicas, mas isso não acontece imediatamente, pois você entra para uma fila. A primeira cirurgia que consegui foi a prótese de mama. Mais tarde, consegui fazer a raspagem da proeminência que protege a glândula da tireoide, o conhecido pomo de adão. Já em 2016, após quase 5 anos de espera, fui autorizada para a cirurgia de readequação sexual ou genitoplastia feminizante. Depois dela, é preciso, no mínimo, dois anos de acompanhamento psicológico, porque todo o seu corpo muda e a forma que lidamos com isso requer preparo emocional. Já a hormonização será para a vida toda, porque embora eu tenha feito a cirurgia e não produza mais hormônios masculinos, eu também não produzo naturalmente hormônios femininos, então, necessito dos estrogênios.

Hoje, você está completamente satisfeita com a sua aparência?

Estou muito feliz, pois, além das cirurgias, também consegui judicialmente fazer a troca do meu nome. Walleria Suri Zafalon é o nome que está na minha certidão de nascimento e em todos os outros documentos. Recentemente, saiu a decisão do STF [Supremo Tribunal Federal] excluindo a exigência desta alteração ocorrer por via judicial. Atualmente, uma pessoa transexual consegue a mudança fazendo uma solicitação diretamente em cartório, o que representa um avanço gigantesco em termos de autonomia. Eu estou muito satisfeita como uma mulher completa e reconhecida oficialmente e documentalmente na sociedade. Presidente Prudente me acolheu de uma forma que eu não imaginava.

A sua perda de visão é uma condição congênita?

Tenho uma doença degenerativa nas retinas que provoca a perda gradual da visão. Já perdi mais de 90% dela e devo ter 5% ou 6% atualmente. A minha condição é conhecida como visão tubular, ou seja, vou perdendo o campo visual, que fecha de fora para dentro. Então, tenho uma visão bem central e só consigo enxergar em linha reta e de forma reduzida. Conviver com a minha deficiência foi um processo de aprendizado e adaptação e acho que consegui enfrentar tudo isso de forma independente e sem vitimismo. Acho que a deficiência só prejudica a pessoa que está naquela condição a partir do momento em que vira um fator limitante. Quando você aprende a ser autossuficiente no dia a dia, a deficiência interfere cada vez menos no crescimento enquanto pessoa, na vida emocional e na autoestima. O papel da sociedade nesse sentido é extremamente importante, em termos de inclusão e acessibilidade. Se você permite o desenvolvimento da pessoa com deficiência e lhe dá plenas condições para que mostre seu potencial, os dois lados saem ganhando.

Como uma mulher transexual, qual o legado que você quer deixar para as futuras gerações?

Acredito que o meu papel é de um peso e responsabilidade muito grandes, porque, a partir do momento em que assumi essa bandeira, penso que a minha postura reflete em toda a minha classe. No meu dia a dia, o que procuro fazer é me aproximar das pessoas sem exigir que me aceitem ou me incluam, mas convidando para que tentem conhecer um pouco melhor a pessoa que, a princípio, pode lhe parecer inadequada ou até mesmo desequilibrada. De alguma forma, tento trazê-la para o nosso universo e convívio, pois acho que a grande quebra de paradigmas ocorre quando alguém se abre para ter esse contato, porque daí ele percebe que existe ali um ser humano que também sente dor, saudade, fome e raiva e que também tem sonhos. É nesse momento que ele consegue enxergar mais coisas semelhantes do que diferentes.

Como você avalia o acesso dos transgêneros aos serviços públicos?

Consigo reconhecer alguns avanços, mas as conquistas dos transexuais ainda são muito embrionárias e apresentam muita resistência. Toda vez que conseguimos dar um passo para frente, há uma mobilização gigantesca do poder público, Legislativo e de movimentos extremamente conservadores para empurrar a gente para trás. Os lugares que atendem gratuitamente e oferecem o tratamento para transgêneros são pouquíssimos. Com isso, há a formação de filas enormes, sendo que, para a cirurgia de readequação sexual, a espera é de 12 a 15 anos. Considerando que uma pessoa transexual tem expectativa de vida de 35 anos, acredito que muitos dos meninos não conseguem realizar a cirurgia. Além disso, apesar de haver um decreto federal que o garante por lei, o nome social não é respeitado pelos órgãos públicos e privados e as punições para quem desrespeita praticamente não funcionam. Vale lembrar que as mulheres transexuais sofrem as mesmas opressões que as demais mulheres. Eu perdi todos os privilégios que tinha enquanto homem e comecei a entender isso a partir da minha vivência como mulher. O que eu dizia antes tinha um peso maior do que o que digo hoje e, para ser ouvida, preciso de esforço.

Para encerrar, registre os seus sonhos.

Atualmente, curso Direito e, assim que me formar, pretendo seguir carreira acadêmica, já que despertei uma paixão gigantesca em dar aula. Também acredito ser a primeira mulher transexual a compor o Conselho Municipal da Saúde, que me dá a oportunidade de apresentar as demandas do público LGBT [lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais] com o mesmo pé de igualdade que as outras demandas. E ainda tenho o sonho de, quem sabe, encontrar um parceiro que esteja disposto a dividir uma vida comigo. Não tenho pretensões grandiosas, apenas quero deixar uma história bonita para a minha cidade.

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